A colecionadora de palavras
O espelho da adolescência de Francisco na literatura de Elsa Morante e o filme que me inspirou a comprar um caderninho de novas "paroles" italianas, como "angoscia" e "fanciulezza"
Vista do restaurante Vinhas D’Alho para o Rio Douro, no Porto
Uma vez, num restaurante em Portugal, inventamos uma brincadeira com o Francisco para matar o tempo: descobrir as palavras mais bonitas da nossa língua. No cardápio, havia uma sobremesa chamada “Farófias”, o que ensejou a coisa toda. Saudade, libélula, mariposa, cumbuca e outras apareceram. Ele ia fazer dez anos naquelas férias e começava a dar sinais de que estava ficando meio chato viajar com o pai e a mãe. Tínhamos que ser criativos! Na época, temíamos o futuro pós-eleições de 2018, mas nem nos piores pesadelos podíamos imaginar o que viria pela frente…
(pandemia, pandemônio)
Nem tínhamos ideia, embora tenhamos sido adolescentes um dia, o que seria ver o garoto crescer confinado em casa, numa época que Elsa Morante bem descreve em A ilha de Arturo:
“Como suportaria ficar trancado quando sentia em mim um espírito infernal que me transformava numa espécie de animal selvagem, o dia todo à caça de sabe-se lá que presa! (...) enquanto subia e descia por aquelas rochas e aqueles prados com minhas pernas compridas, parecendo uma camurça ou um lobo, numa contínua turbulência que não encontrava desafogo.”
A adolescência. Tanto faz de menino ou menina, cada um tem as suas questões. Quando li o romance pela primeira vez, no projeto #ferranteindica, da Aline Aimée, eu tinha uma expectativa enorme em conhecer a escritora que teria inspirado o pseudônimo de Elena Ferrante. Que era uma de suas preferidas. Ainda não tinha lido a Frantumaglia, e queria encontrar em todas as autoras que ela indicava um pouquinho de sua própria literatura. Em suma: eu queria “ler” de novo Lenu e Lila de alguma forma na ilha de Procida.
Mas Elsa Morante escrevia sobre um menino que passava a infância e a adolescência idolatrando um pai que o abandonava (novidade!), imaginando que todas as mulheres eram feias, de acordo com as certezas universais que aprendeu a cultivar, lendo histórias sobre heróis desbravadores e aventureiros, sendo cuidado por um babá porque na casa em que morava as mulheres não eram bem-vindas e tinham medo de frequentar. Nunca confessei, mas na época ler o livro foi um pouco desgastante, eu diria até sofrido.
Próxima da Tetralogia, só a vista para Ischia que os habitantes de Procida, aquela ilha linda no golfo de Nápoles, possuía. Três anos depois, tendo testemunhado todas as mudanças no corpo do meu filho e lidando agora com o auge de sua adolescência, eu reli A ilha de Arturo.
“O fato era que a volta da bela estação naquele ano para mim foi acompanhada, acredito, pela passagem daquela idade que as boas famílias chamam de idade ingrata. Nunca me acontecera antes sentir-me tão feio: em meu corpo e em tudo o que eu fazia percebia um estranho ar desajeitado, a começar pela voz. Eu tinha agora uma voz antipática que não era nem mais de soprano (com a minha de antes) nem, ainda, de tenor (como a minha de depois): parecia a voz de um instrumento desafinado.”
O trecho acima estava sublinhado na primeira leitura. Na página seguinte, tem uma anotação minha: “Bonita descrição da puberdade.” Mas só agora, em maio de 2024, eu me emocionei de verdade com a literatura de Morante. Chorei. Marquei muito mais passagens. Tem a ver com o fato de ser uma leitora melhor (graças a Ferrante, inclusive), de não ter mais aquela ansiedade de terminar o projeto, de poder apreciar o texto, a história, a linguagem.
De todo modo, o que me pegou, de verdade, foi encontrar a adolescência do meu filho numa obra literária tão bonita. Reler sob outra perspectiva, pensando que o menino Arturo, como me alertou a Isabela Discacciati nesse post , citando Elena Ferrante, é a a menina Elsa. Não importa. Quer dizer, sim. Como escrevia bem essa mulher!
Fiz um vídeo para o clube de leituras italianas do Instituto Italiano de Cultura inspirada nesse post da Isa, relendo o trecho da Frantumaglia em que Ferrante fala sobre a obra da escritora. O encontro é na quarta, dia 29 de maio, no Teatro Itália.
Colecionadora de palavras
Sempre gostei de estudar línguas estrangeiras. Gosto de etimologia, de identificar a origem das palavras que conhecemos em outras que estamos aprendendo. São pequenas epifanias a cada vez que isso acontece nas aulas. Vi um filme muito bonito outro dia, em que uma moça italiana (a atriz era brasileira) ensinava a um homem inglês algumas palavras em italiano e as formas de identificar os gestos pelos quais os italianos se comunicam. A câmera focava no caderno, nas palavras, e eu voltei pra casa com vontade de registrar num caderno (não o formal, de estudo) as palavras que vou aprendendo pelo caminho, nos filmes principalmente.
Na quinta passada, fui convidada pela professora Camille Pedrosa, que me dá aula no Instituto e é também docente na UFF, para assistir a uma palestra de um professor italiano na universidade. O tema era “La letteratura dall’ombra” e a primeira palavra que anotei: ombra. Sombras.
Em certo momento, o professor falou em “angoscia” para definir a obra de um dos autores que estava apresentando. Embora ainda não fale frases completas, muito menos complexas, eu entendi toda a aula em italiano e captei que tratava-se da palavra angústia, em português. Angoscia! Que pronúncia bonita. Quando não dominamos ainda uma língua, é o som de suas palavras que nos atrai.
Logo depois, num slide, apareceu “fanciulezza”. Ele leu rápido, mas o som ficou… “fanciulezza”. Era infância. Naquela noite, as duas palavras que viriam sofisticar meu vocabulário e morar no meu novo caderno tinham a ver com o livro de Morante. Não é no fim da “fanciulezza” de Arturo que começa a sua fase de puxar “angoscia”?
Nesse vídeo bonito que a tradutora Aline Leal enviou no nosso grupo de leituras italianas, a diretora do filme citado acima, La chimera, fala sobre a história e nos deixa um recado: que nós deixemos para os arqueólogos do futuro vestígios de beleza e não apenas lixo tóxico ou qualquer outra obra do capitalismo. Gosto de pensar no estudo das línguas como uma arqueologia das palavras, cultura e pessoas, um estudo, a investigação de um tesouro a ser descoberto: o país, sua história, sua literatura. Vejam o filme. Tem a Isabela Rosselini no elenco. E a Alice Rohrwacher na direção. É pra ficar de olho nela também.
Para finalizar, a também diretora italiana Paola Cortelesi ganhou o David di Donatello por C’è ancora domani e a produtora Pandora Filmes anunciou, em seguida, que o filme chega aos cinemas brasileiros no dia 4 de julho. Estarei lá para ver essa obra belíssima em tela grande.