A maternidade de quem fica
E o livro sobre mães que vão embora: "As abandonadoras", de Begoña Gómez Urzaiz, traz ensaios deliciosos sobre mulheres que desafiaram a culpa e os tabus; autora estará no Rio para lançamento
Réveillon de 2008 para 2009, o primeiro dia em casa com o Francisco, que estava mamando tranquilamente na virada
Entrei no táxi com a voz embargada. Quando vi que a motorista era uma mulher, o choro caiu. Estava indo para o Galeão, pegaria um voo para Recife dali a duas horas, enquanto o Francisco dormia profundamente no quartinho dele (depois de mais uma noite agitada, pois acordava de três em três horas ainda para mamar). Ele tinha pouco mais de um ano quando fiz minha primeira viagem a trabalho.
A taxista não deu a mínima para o meu choro, ainda mais depois que soube que eu estava indo para Pernambuco e chorava porque não queria deixar meu filho “sozinho”. “Mas o pai não tá com ele?”. Estava. O pai e a minha mãe, que se despencou de Niterói para o Rio, pois achava que o Pedro, sendo homem, não daria conta sozinho do Francisco.
No avião, sentei ao lado do chefe e engoli o choro. Em Recife, acordei 5 da manhã, liguei pra minha mãe e levei um fora: “Francisco tá dormindo, tá ótimo, me deixa dormir também”. Voltei a dormir, tão profundamente, que quase perdi a hora da primeira entrevista…
Fui criada numa família grande. Minha mãe tinha 9 irmãos, entre homens e mulheres. Todo mundo casado, com dois ou três filhos. Minhas primas e primos, em sua maioria, casaram cedo. Cada nascimento de bebê era um acontecimento. Lembro de uma tia que teve gêmeos e todas as mulheres se revezando para ajudá-la a cuidar das crianças. O enxoval era a coisa mais linda que eu já tinha visto, tudo em dobro.
No estúdio do jornal O Globo (único lugar possível para um ensaio em meio a uma campanha política na qual eu trabalhava na cobertura)
Quando contei pra mamãe da gravidez, ela foi correndo na primeira loja de bebês para comprar o primeiro presente. A felicidade era de final de Copa do Mundo. A filha mulher finalmente lhe daria um netinho. “Eu sabia que você ia engravidar logo. Minha família é parideira”. Quando o Francisco nasceu, ela ficou chocada porque eu estava me consultando com um grupo de mães que ajudavam as mulheres a amamentar. “Na minha família só tem vaca leiteira. Você não vai ter problema nenhum com isso. Eu, hein.”
Até que foi verdade. Francisco chegou do primeiro banho e exames iniciais, a enfermeira colocou no meu colo, eu tirei o sutiã, encostei o rostinho dele no meu peito e ele começou a mamar. Tão direitinho que parecia ter passado os últimos nove meses na barriga treinando para aquele momento. Não senti dor, só prazer. E o leite veio.
Fui uma menina que cresceu brincando de bonecas e com os nenéns da família. Meus outros brinquedos eram aqueles eletrodomésticos em miniatura. Eu sempre quis ser mãe. Embora tenha estudado, me formado e começado a trabalhar aos 19 anos, depois de fazer um concurso público, minha grande ambição mesmo era a maternidade, confesso.
Tive muito medo de não realizar esse desejo que, segundo minha mãe, estava na ancestralidade de sua família. Na minha geração, eu não fui a única, mas, se for contar nos dedos, a maioria de minhas amigas optaram por não ser mães. No início, antes de conhecer o feminismo (pois vivi num buraco entre a onda do fim dos anos de 1970 e os anos 1990 e 2000), eu achava estranho. Confesso de novo.
Quando engravidei, comecei a escrever sobre maternidade num blog do Globo, jornal em que trabalhava, junto com as outras grávidas (eram seis, se não me engano) e outras mães da redação. Esses textos me ajudaram muito a conhecer as diferentes maternidades. Eu era aquela que já tinha livro de receitas para comidinhas infantis, comprei panela exclusiva para cozinhar para ele, sonhava com os biscoitinhos caseiros que faria para os seus lanches, testava vários sabores de suco na centrífuga recém-adquirida.
Livrinho de receitas que me inspirou a comprar a panelinha e a cozinhar para o Francisco
Aí o Francisco nasceu. A panelinha começou a ser usada depois dos seis meses, em que cumpri, a duras penas, o aleitamento exclusivo. Não lembro em quanto tempo passei a misturar a preparação das refeições dele com as nossas. Mas não demorou, claro. A centrífuga, depois de um ano, foi aposentada. A batedeira, novinha e linda, deixava meus bolos solados. Poxa, os da minha mãe, feitos sem receita e batidos à mão, eram tão fofinhos…
Dormir era um luxo nos três primeiros anos do menino. Ele tinha 5 meses e 15 dias, período em que não me afastei dele nem por uma hora (só para tomar banho, etc.), quando voltei a trabalhar no jornal. Foi choro, viu? Só meu porque ele se adaptou rapidinho.
Eu estava na Record quando o grupo editorial lançou Mães arrependidas, da socióloga israelense Orna Donath. Tive dificuldade de ler o livro. Não cheguei até o fim. Não me espantava tanto as mulheres que optavam por não ser mães, mas as que diziam publicamente terem se arrependido? Isso eu tinha dificuldade de entender.
Eu já tinha lido relatos francos de maternidade no tal blog do Globo, e o livro chegou numa época em que estava começando a surgir narrativas mais cruas da tal “maternidade real”. “Nunca contaram pra gente como ia ser”. A única vez em que me alertaram que era preciso dormir muito durante a gravidez, porque “nunca mais meu sono seria o mesmo” fiquei irritada. Achei que era terrorismo. No fim, era verdade.
(Interrompo o texto para discutir com meu filho. Ele tem 15 anos, foi criado com comida caseira - até para festinhas de crianças eu levava marmitinhas - e hoje queria deixar de almoçar em casa para ir comer no Mc Donald’s!!!! Dei chilique, fiz sermão. Bem, ele desistiu, almoçou o que eu tinha preparado e eu voltei aqui para escrever)
Por isso, quando vi recentemente o lançamento de As abandonadoras, da jornalista catalã Begoña Gómez Urzaiz, com tradução de Eliana Aguiar, desconfiei. Olhei de lado, confesso, e nem li a sinopse. Até que a editora Juliana Freire, da Zahar, me escreveu dizendo que ia me mandar o livro. Opa!
Que alívio quando comecei a ler e já me identifiquei com a autora de cara, ela também confessando que, mesmo com o seu feminismo da quarta onda (o mesmo que o meu, aliás), ainda não conseguia entender um tipo de mãe: essa que dá título à obra, a que abandona seus filhos. Em ensaios que misturam, de forma divertida, a sua própria experiência como mãe e jornalista, ela se debruça sobre histórias de mulheres que, por motivos diversos, não criaram seus filhos.
Gala Dalí
Begoña escreve com humor e fez uma seleção afiada de histórias e temas que ilustram a sua questão inicial: o que leva mulheres a abandonarem seus lares e deixarem filhas e filhos para trás? Além de personagens incríveis como Gala Dalí, que largou a família para se juntar ao pintor; Ingrid Bergman, que escreveu um bilhetinho famoso ao diretor italiano Roberto Rosselini e deixou o filho nos Estados Unidos para filmar com ele na Itália; e as escritoras Muriel Spark, Mercê Rodoreda e Doris Lessing (as duas primeiras abandonaram seus filhos durante a guerra), Begoña também reflete sobre livros e filmes que retrataram o “drama” nas páginas e telas. O capítulo sobre Meryl Streep é delicioso!
Não é um livro para redimir nenhuma mulher, pois elas tiveram suas carreiras, casaram novamente e, se enfrentaram preconceitos enquanto eram vivas, trataram de lidar com o tema da melhor forma que encontraram. Mas propriamente, se não me engano, uma tentativa da própria autora de se tornar mais empática com essas histórias. Afinal, por trás delas, há sempre homens que não são julgados, casamentos ruins, infelicidade por destinos que elas preferiam ter evitado. Ou simplesmente, o desejo da liberdade, depois de terem engravidado - sem querer, sem pensar, sem saber o que viria pela frente, ou querendo, mas se arrependendo depois.
Quem somos nós para julgar?
Algumas histórias do livro eu já conhecia. Outras foram uma grande surpresa, como a da personagem Maria Montessori, essa mesmo, que criou uma teoria socialista da educação, que hoje é paga pelas classes sociais no topo da pirâmide. Ou a de Joni Mitchel, que precisou dar a sua filha para adoção, por falta de condições de criá-la, e depois se reencontrou com a garota, já adulta. Eu sabia da história de Patti Smith, que também deixou um filho para adoção (fui até pesquisar no google sobre o fato, porque me lembrava de ter lido num dos livros da autora).
Livro da Temporal editora, com tradução de Angélica Neri, Gisele Eberspächer, Luiz Abdala Jr. e Ruth Bohunovsky.
Outra surpresa foi descobrir que Uma casa de bonecas teve uma encenação com final trocado na Alemanha, com o aval do autor, que teve medo de adaptarem o texto mesmo sem a sua anuência. Imaginem Nora se arrependendo da decisão e decidindo ficar em casa com os filhos? A autora não cita, mas uma “continuação” da peça de Ibsen foi escrita por Elfriede Jelinek, primeira e única mulher austríaca a ganhar o Nobel. O que aconteceu após Nora deixar a Casa de Bonecas ou Pilares das Sociedades está na minha lista de leitura (será debatido no clube de leitura da Aline Aimée, com quem já lemos outro livro, este perturbador, da autora, O pianista).
O livro termina com depoimentos de mulheres que foram praticamente obrigadas a abandonar seus filhos, por falta de opção econômica. São mães imigrantes, que deixaram seus países na América Latina para tentar a vida na Europa. Begoña não disfarça a culpa: seu livro não poderia ter apenas a história de mulheres artistas, famosas, que em algum momento retomaram as rédeas de sua vida depois da maternidade. São mulheres que conhecemos bem aqui no Brasil, que deixam seus filhos em casa para serem babás dos filhos de outras mulheres.
Eu sou quase suspeita para recomendar, porque, além de ter gostado muito dessa leitura, estarei com a autora na próxima segunda-feira, numa sala de cinema próxima à Janela Livraria, que promove o lançamento de As abandonadoras com a Zahar. Mas o livro é realmente uma delícia.
Apareçam! Comigo na conversa estarão a própria autora, que chique, a escritora Renata Corrêa e a atriz Karla Tenório, do perfil e da peça Mãe arrependida. O assunto é inesgotável!
Me identifiquei demais com seu texto! Deve ser difícil deixar um filho... Amo a maternidade, fui mãe com 23 e depois de novo aos 30, cada época vivida de uma forma. Estarei lá na segunda-feira. Vai ser imperdível...Bjos, saudades
que resenha, Claudinha. me vendeu o livro ♥