As preferidas do Francisco
Neste 19 de junho de 2024, aniversário de 80 anos de Chico Buarque, algumas lembranças da família Lamego-Malta com o maior artista do Brasil (na opinião do xará, merecia o Prêmio Nobel)
Quando eu beijei o Pedro pela primeira vez, na esquina da praia de Copacabana com a Almirante Salgado, não fazia ideia, ainda, que ali em frente morava Maria Amélia Buarque de Hollanda. Era a esquina do Bip Bip, para onde eu fora naquela noite ver o moço de olhos claros que cantava samba. Não, o Chico não estava lá no bar. Era o Pedro Paulo Malta, mais fã do cantor e compositor que eu.
Com seus olhos verdes, repertório aprendido nas rodas com Cristina Buarque, a irmã do “homem”, que incluíam os sambas da Portela, de Paulinho, Noel, Ismael e todos os sambistas que chegaram aos ouvidos da família Buarque desde que Chico era um guri e as irmãs, suas cantoras prediletas, o Pedro conquistou tudo.
Dali a um mês, quando completamos um mês de namoro, trocamos presentes: eu dei um livro sobre música (de um autor que ele nem gostava muito, descobri meses depois) e ele, um disco do Chico Buarque, um bonequinho do Tom Jobim e o livro de letras do Vinicius. Um relacionamento que começa assim, minha gente, só pode acabar como? Com um filho que, no início, eu queria que se chamasse Noel.
Isso mesmo, eu tinha acabado de ler a biografia (esgotadíssima) do compositor da Vila escrita por João Máximo e Carlos Didier. Estava apaixonada por Noel Rosa. O Pedro, em mais um de seus presentes musicais, me dera a caixa com a discografia completa do poeta da Vila. E mais: eu também tinha descoberto os dotes musicais da Aracy de Almeida, cantora que fez sucesso cantando muitas músicas do compositor de “Último desejo” e “Palpite infeliz”. Tinha que ser Noel.
Anotei na legenda do Facebook: Francisco na roda da Folha Seca cantando Noel com o pai
Mas Pedro Paulo (Pepê para os amigos) tinha outros planos, que incluíam não colocar nome composto na carteira de identidade do filho. Ele tinha escolhido Francisco. “Francisco Noel”?, insinuei. Não, Francisco mesmo. O nome do ídolo que embalou tantos de nossos dias e noites… Concordei, né? A lembrancinha que distribuímos na maternidade, naquele 29 de dezembro de 2018, foi um CD (somos antigos) que o Pedro gravou chamado “As preferidas do Francisco”. Todas as músicas eram do Chico Buarque, lógico.
Quando Rita Lee morreu, há pouco mais de um ano, escrevi um texto em que falava sobre a importância de alguns artistas que fazem parte da “paisagem sonora” de nossas vidas. Ela era uma. E me pegou demais com a música sobre a mulher que é bicho esquisito “porque todo mês sangra”. A arte é assim, “explica” a vida pra gente.
Eu entendi o que era amor, tesão e todas as coisas que as mulheres sentem quando estão apaixonadas quando “entendi” as músicas de Chico Buarque. Eu lembro de muitas epifanias quando ouvia as letras e pensava: “é isso!”. Também me recordo da alegria de ver o cantor pela primeira vez ao vivo, no palco do Canecão. De me emocionar ao ouvir e cantar junto com a plateia músicas como “Quem te viu, quem te vê”. Nesse primeiro encontro, uma cena ficou inesquecível: parte do público, inconformada que ele não tinha cantado “Geni”, entoou a música inteirinha, em coro, na saída do Canecão. Chorei.
Eu fui sozinha nesse show. Assim como na noite do Bip, em que atravessei a Ponte Rio-Niterói para encontrar o “Meu amor” da música, com um jeito manso que era só dele. Podem imaginar a alegria de encontrar um par para ir nos shows? E assim foi, todas as poucas vezes que Chico subiu ao palco depois que começamos a namorar, uma delas no Canecão, depois no Vivo Rio. Dessa primeira vez, Ana de Hollanda, amiga e chefe do Pedro na Funarte, nos convidou para o camarim do irmão.
Eu já tinha encontrado Chico naquele camarim. Era estagiária da assessoria de imprensa da Mangueira e fui escalada (será por que? A única da agência que amava samba e carnaval) para trabalhar naquela noite. Trabalhar? A chefe da conta acompanhou a maior parte das entrevistas. Eu ao lado, só observando e aprendendo. A TV Globo já tinha entrevistado todo mundo, a assessora relaxou e, quando viu a equipe da Rede TV chegando o Canecão, super atrasada, me mandou atender sozinha. A repórter não queria pouco: falar com o Chico Buarque.
A missão impossível ficou comigo. Implorei, quase ajoelhei na porta do camarim, eu e a repórter, claro, para que chamassem ele, dissessem que seria rápido, que era uma TV sem prestígio, por isso seria legal também atender, mostrar que a gente não dava exclusividade pra Globo. Uma conversinha que deu certo. Quando o homem saiu do camarim, eu fiquei muda. Quase desmaiei. Ele deu entrevista e, no final, eu saquei da bolsa o CD do show “As cidades” e uma caneta, toquei no ombro dele e pedi com os olhos para ele autografar. Ele perguntou meu nome e, juro, até hoje não sei como saiu e ele ouviu aquele “Cláudia”, bem baixinho.
Anos depois, entrei no mesmo camarim com o Pedro e perdi a voz novamente. Jornalista acostumada a falar com políticos, celebridades e artistas, eu ficava muda na frente dele. Mas Chico também não gosta de receber desconhecidos no camarim. Fica tímido, coisa que ele não é. Desconfortável. O caso é que na foto estamos eu e o Pedro sorrindo e ele com cara de assustado. Ele pode tudo.
Em 2004, o Globo preparava um especial de 60 anos de Chico e o jornalista Hugo Sukman, então no Segundo Caderno do jornal, compartilhou com colegas da redação 64 versos do cantor. Está arquivada no meu gmail a correspondência, datada de 18 de junho, véspera do aniversário. Ler os versos assim, recortados das canções, nos dava a dimensão da poesia e do talento literário do compositor. Escritor também.
No aniversário de 15 anos do Francisco, em dezembro passado, fomos almoçar na Casa do Sardo, um restaurante italiano na zona norte do Rio, e o assunto era o Prêmio Nobel. Quando contamos pra ele da polêmica em torno de Bob Dylan ter sido agraciado, o aniversariante não teve dúvidas:
“Quem merece o Nobel é o Chico Buarque”. (Francisco Malta)
Ah, meu guri!
Ele tinha 8 anos quando o xará lançou “Caravanas”, o primeiro disco de inéditas em muitos anos. Um sinal de que viria mais uma temporada. A primeira música que ele aprendeu, e cantava inteirinha, era “Massarandupió”. Nessa época, ficou muito impressionado ao saber do neto Chico Brown e que a neta Clara cantava no coral de sua escola, o São Vicente. Era mais uma aproximação afetiva da família com os Buarque de Hollanda, agora com os netos.
Na entrada do Vivo Rio, para o primeiro show do xará, em janeiro de 2018
Nas nossas idas a Niterói, Francisco cantava as músicas e queria entender tudo das letras. Para o pai, pesquisador, jornalista e contador de histórias também, um prato cheio. Foram muitas aulas sobre a história da música, da política, da censura, dos costumes e preconceitos do país que nosso filho ia descobrindo através das canções. Outro dia, ele deu entrevista ao Globo para falar de sua predileção e do amor que Chico desperta “nos comunistas de sua escola”. Uma graça!
Naquela temporada, fomos três vezes assistir ao show no Vivo Rio. Numa delas, sentamos ao lado de Chico Brown. Em 2023, no último show, com a Monica Salmaso, estávamos na casa de shows no fatídico 8 de janeiro. Chico e Monica salvaram nossa alma!
O coração do Pedro estava machucado em dobro naquela noite. O pai dele, no CTI, nos deixaria um mês depois.
Em 19 de junho do ano passado, ele convidou o Francisco pra cantar com ele no Bip Bip, na tradicional roda de aniversário de Chico. Com 15 recém-completados, Francisco já não andava mais com a gente nos shows e rodas de samba. Mas ainda sabia muitas músicas de cor (ação). Para nossa surpresa, aceitou o convite. E cantou lindamente em dueto com o pai.
Ficamos na dúvida se ele quis ir influenciado pelas novas amizades musicais da escola ou para agradar ao pai mesmo. Há alguns dias, ele cantarolava “Cotidiano” no chuveiro. Voltou de Niterói comigo assobiando “Caravanas” e depois “Massarandupió”. Tenho certeza, nesses momentos de orgulho e alegria, que a herança musical está garantida.
Já a literatura… O primeiro livro de Francisco é, adivinhem, “Chapeuzinho amarelo”. O Pedro pegou o autógrafo pro filho numa ida ao apartamento do cantor, para uma entrevista, há alguns anos. Ele adorava “ler” o livro comigo, assim como vários outros. Mas ainda não pegou o hábito da mãe.
Como diria papai, tem tempo.
Quem sabe ele se interessa pelo romance que vem aí:
Escrevo esse texto na véspera do aniversário, depois de uma função nada glamorosa, lavar uma pia cheinha de louça. Mas o fiz ouvindo… Chico Buarque. Quando ele cantou:
“O meu amor
Tem um jeito manso que é só seu
Que rouba os meus sentidos
Viola os meus ouvidos
Com tantos segredos lindos e indecentes
Depois brinca comigo
Ri do meu umbigo
E me crava os dentes, ai”
… lembrei do livro que estou lendo, e para o qual vou voltar assim que terminar de editar essa newsletter especial:
_ Me sinto muito agitado.
_ Está nervoso?
_ Não, estou contente, mas o desejo me deixou abalado. Você não está agitada?
_ Em que sentido?
_ Perturbada, sabe o que eu quero dizer.
_ Posso não responder?
_ Diga em meu ouvido.
_ Não te digo nada.
_ Por favor.
Me inclinei e encostei o ouvido em sua boca. Nadia meteu a língua dentro dele e eu me retraí num impulso, enxugando-o com o indicador. Falou com os olhos brilhantes:
_ Satisfeito?
Segredos, Domenico Starnone.
Que história bonita, terminei o texto com vontade de ouvir o Chico 😍