Desobedecer escrevendo
O feminismo em ensaios de Iana Villela e a escrita de mulheres contra a ditadura num bonito inventário feito pela professora Eurídice Figueiredo. Vou mediar o lançamento de ambos nesta semana, no Rio.
Pink, 1973, de Sheila Levrant de Bretteville (do catálogo The art of feminism, Tate)
Sempre gostei de usar shorts. Tenho alguns ainda na gaveta, da coleção de modelos que comprava a cada verão para os passeios, viagens e festinhas com as amigas. Uma vez, muito jovem, no primeiro emprego, fui com um deles num churrasco de comemoração do fim do ano no trabalho. Eu tinha 19 anos e, apesar das pernas finas que eu sempre detestei, contrastando com quadril e bunda avantajados (naquela idade), virei alvo de comentários no pós-festa. Me senti tão constrangida e assustada que, a partir dali, passei anos, muitos anos, sem ir a esse tipo de confraternização (perdi muitos shows nas comemorações de funcionários do Globo por isso).
O texto era pra começar de outro jeito, mas lembrei dessa história do short numa festa da firma (vejam bem, um churrasco diurno, no verão de São Gonçalo, cidade metropolitana mais quente que o Rio), que estava guardada no meu inconsciente…
Então, vamos recomeçar. Eu sempre gostei de usar shorts, saias, macaquinhos. Mas, depois dos 30, de súbito, uma amiga da faculdade me chamou num canto e disse, como se estivesse dando um conselho muito importante: “Eu, se fosse você, não usava mais short curto. Já passou da idade.” Eu fiquei tão estupefata que não consegui responder, não esbocei reação. Nem pela gravidez eu tinha passado ainda, tinha 59 quilos, e a amiga, loira, magra, bonita, estava censurando o meu corpo. Essa mesma pessoa, tempos depois, quando briguei com um namorado, deu outro vaticínio: “Fica com ele. Você não vai arranjar ninguém melhor.” Hã?
A amizade se esvaiu, por outros motivos, talvez porque eu mesma não tenha me dado conta do feminismo a tempo, por meus próprios defeitos, sei lá. Acabou não porque ela foi extremamente agressiva nesses dois comentários, dos quais me recuperei, mas não esqueço. Guardei no meu consciente mesmo e lembro deles toda vez que penso no tanto que aprendi anos depois, mais nos livros, nas redes sociais, vendo o exemplo de outras mulheres.
Minha geração viveu um gap. Cresci sendo rebelde, querendo sair do meu gueto, me sentindo inadequada na família e vizinhança, mas não tinha noção do quanto a independência financeira, a vontade de estudar, trabalhar e conhecer outros mundos estava ligada a uma visão de mundo que, fui aprender com a professora Juliana Diniz, Simone de Beauvoir dizia que era transcendente e que nós, mulheres, tínhamos direito a reivindicar. A transcendência.
Na semana passada, recebi Desobediência - ou o que no futuro chamaremos de lucidez (Harper Collins) de Iana Villela, e é por causa dele que estou nessa rememoração toda do meu passado. O livro é um conjunto de ensaios feministas que todas as meninas/mulheres devemos ler, seja porque abrem os nossos olhos para o que sempre esteve à nossa frente, mas não soubemos nomear, ou para coisas que nunca percebemos ou não soubemos elaborar. É um abraço em mulheres como eu, à beira dos 50, que, não tendo vivido ou aprendido nada de feminismo até os 30 e muitos, ainda têm muito com o que se assombrar. E os lampejos de lucidez da autora cumprem esse papel.
Iana nos oferece um espelho no qual enxergamos mulheres normais, com qualidades e defeitos, talvez tortas como a torre de Pisa (um dos meus textos preferidos da coletânea), mas bem bonitas, bem maiores do que nas lentes deformadas que costumamos usar e ver apenas os nossos cacos. É o contrário do espelho que cita Virginia Woolf em Um quarto só seu, no qual homens eram vistos com uma lente de aumento pelas mulheres anjos do lar, muito maiores do que realmente eram.
Iana é ensaísta de mão cheia. Ela faz do cotidiano matéria para seus textos e recorre a fontes e informações relevantes para confirmar aquilo que já intuiu observando as pessoas. Ela trabalha com comunicação, tem o dom para brincar com as palavras, mas as usa com verdade, talento e elegância. Não escreve para convencer ninguém, mas para fazer pensar.
De quinta para sexta, deixei o livro na cabeceira da minha mãe. Ela não teve tempo de ler, tive que voltar com ele pro Rio, mas na manhã de sexta mamãe já veio com um papo de que nunca obedeceu a pai, marido, homem nenhum. Toda vez que estamos juntas, ela conta mil histórias de família, e emendou numa dessas, concluindo com a tal da desobediência. Ela se identificou com o título do livro, com certeza. Vou dar de presente autografado.
Hoje, uma amiga me ligou chorando pelo fim de um grande amor. Conversamos, eu falei o que pensava que estava doendo mais no coração dela e, no meio da ligação, por vídeo, peguei o livro de Iana e mostrei pra ela: “você tem que ler esse livro”. Tem mesmo. Nós todas temos. Temos defeitos, já fomos antifeministas em algum momento da vida, já odiamos outras mulheres, já fomos injustas com outras tantas, já sofremos, por outro lado, abuso e assédio também de outras mulheres (no ambiente de trabalho, então, ninguém escapou). Mas, sabemos que nosso consolo, nossa salvação, a mão a quem recorrer é sempre de outra mulher. Com o patriarcado já passamos por tudo isso mesmo e continuamos a não esperar nada. Porque dali não vai sair nada mesmo.
Tem um texto muito bonito no livro, que me emocionou demais. É sobre o encontro que Iana teve, num restaurante na Itália, com uma mulher de seus 80 anos viajando, bebendo seu vinho e comendo sozinha. Iana percebeu, na cena tão bonita, que precisamos nos inspirar mais nas mulheres mais velhas, mas não apenas nas nossas mães e avós, também elas, mas em todas que descumprem o papel que a sociedade espera delas.
Fiquei particularmente tocada porque Iana me convidou para mediar uma conversa com ela no lançamento do livro na próxima quinta, dia 26, na livraria Janela. Pensei, ainda antes de ler o livro com a lente que a autora nos oferece: por que eu?
Só agradeço.
Nesta terça, dia 24, também vou mediar um lançamento muitíssimo especial, na Travessa de Botafogo, da professora Eurídice Figueiredo, que lança Mulheres contra a ditadura - Escrever é (também) uma forma de resistência (editora Zouk). O livro é um inventário dos romances escritos por mulheres que têm a ditadura como tema. São 95 obras, das quais 14 foram publicadas antes do ano 2000; 81 saíram a partir do novo milênio, sendo que 54 livros foram lançados no país depois de 2014, talvez sob o impacto justamente do relatório da CNV.
Eu, que já tive na minha estante dezenas de livros escritos por homens, sejam jornalistas, políticos e/ou ex-militantes, e só recentemente tive acesso à literatura feita por mulheres (os livros de Juliana Leite e o de Cláudia Lage, que estará com a gente no encontro, por exemplo), já conhecia boa parte das histórias de mulheres que lutaram contra a ditadura - informações que me chegaram pelo meu ofício de jornalista, minha curiosidade pelo tema, mas raras vezes pelo relato das próprias mulheres.
Eu já sabia de Dina, a guerrilheira do Araguaia; Inês Etienne Romeu, a única sobrevivente da casa da morte em Petrópolis; de Iara, ex-companheira de Lamarca; Dilma, claro, nossa ex-presidenta que foi torturada por fazer parte do Var-Palmares, da luta armada contra a ditadura. Tinha lido sobre as torturas no Tortura nunca mais; acompanhei, já longe do jornalismo diário, as investigações da Comissão Nacional da Verdade; vi, chorei e tive pesadelos depois de assistir ao filme de Lúcia Murat, Que bom te ver viva. Mas, até ler a obra de Eurídice, ignorava quase completamente a produção, ficcional ou não, de muitas mulheres que escreveram, passaram pelos traumas e os reviveram para contar. Algumas autoras não viveram nos tempos de exceção, mas herdaram lutos, ouviram histórias, pesquisaram e quiseram escrever também. Que bom para a memória!
Na apresentação e na conclusão, Eurídice reforça um dado que está em todos os relatos, que é a violência de gênero praticada nas torturas. Nos xingamentos, de cunho sexual, e nos abusos que sofriam, nas ameaças aos filhos, no trato com a maternidade na prisão, elas sofreram sevícias marcadas pela misoginia e machismo. Um dado que Eurídice observou, e que custa muito a aparecer nas obras, são os estupros sofridos pelas mulheres nas salas de tortura. Na tentativa de sobreviver ao inferno, muitas se calaram sobre esses fatos. Alguns vêm à tona nas histórias.
Como disse acima, eu vivi uma época obcecada pela ditadura. Talvez por ter crescido sem informação nenhuma sobre a História do Brasil, nem em casa nem na escola, onde ainda se estudava educação moral e cívica e se cantava o hino nacional toda semana. Quando entrei na universidade e comecei a me inteirar, passava dias na biblioteca anotando os livros que ia ler, para entender o que se passou no país enquanto eu nascia, crescia e via meu pai comprar, com orgulho, as quatro TVs que tínhamos em casa para vermos os programas de auditório, as novelas e os desenhos animados nas grandes redes.
Li muito, mas passei ao largo das escritas realizadas por mulheres, que publicaram pouco nos anos seguintes à abertura, e sempre por casas editoriais menores, sem muita repercussão. Sou da geração que virou adolescente na década de 1980 e, como disse acima, viveu assombrada pela inflação, pela falta de ideologia e sem saber por que as mulheres que ganhavam flores no dia 8 de março, apanhavam no restante do ano de seus maridos (eu tinha uma vizinha, na vila em que morei por muitos anos, que fazia aniversário no dia 8 de março e era espancada de vez em quando pelo marido, um ex-policial temido, mas também admirado pelos moradores). Hoje, me pergunto como mamãe me deixava frequentar aquela casa, de onde teria mais histórias para contar, mas preciso de outros anos para me encorajar.
É muito bom ver mulheres escrevendo cada vez mais. No ano em que o golpe de 1964 completou 60 anos, logo após os anos de ameaças à democracia que vivemos de 2018 a 2022, a efeméride estava passando quase em branco. Ler esse calhamaço de Eurídice Figueiredo me fez reviver as dores das mulheres que passaram pelas torturas, mas também me trouxe o alento de que sempre vamos sobreviver para contar.
Texto incrível como sempre, Claudinha.
É sempre muito bom e inspirador te ler.
Obrigada