Engole o choro, mãe
A montanha-russa da maternidade, e da vida também; a linha fina que nos separa da euforia e da dor; a tragédia do Sul e a anestesia do show da Madonna
Imagem do telescópio Hubble, da Nasa: galáxia Virbo, em forma de espiral, a 50 milhões
de anos-luz da Terra, com milhares de estrelas rosas
Um dia, você é filha e entra no elevador numa maca, rumo a um centro cirúrgico, chorando feito um bebê desmamado. No outro, você é mãe e tem que fingir maturidade emocional porque é seu filho adolescente quem se prepara para uma cirurgia, e de emergência, sem aviso prévio.
Como faz? “Engole o choro”, mãe.
Completa hoje uma semana que eu estava na sala de aula, em Niterói, quando o Pedro me zapeou pedindo pra acionar a pediatra, pois a dor na barriga e o mal-estar do Francisco estavam piorando. Eu mal falei com a doutora e os dois estavam já a caminho da emergência, no mesmo hospital onde fui socorrida na pandemia da Covid, em abril de 2020; onde o próprio Pedro operou, em fevereiro de 2022; pro qual corremos algumas vezes por acidentes esportivos do adolescente e onde, por fim, meu sogro faleceu de Covid no ano passado.
Escrevo e tenho vontade de reler pelo menos alguns trechos de Constelações, de Sinéad Gleeson (tradução de Maria Rita Drummond Viana), sobre o qual já escrevi aqui. Mas nem há tempo para procurar o livro na estante.
A cirurgia aconteceu de madrugada, numa noite longa em que, no quarto, enquanto esperava o Francisco retornar, eu olhava para o Pedro, incrédula, me sentindo num sonho, num filme. Não podia ser verdade. Não parecia real. Revivíamos, nós dois, as horas em que o nosso petito fez outra cirurgia, quando tinha de 3 para 4 anos, num pré-carnaval, há mais de dez anos, mas com um cenário bem diferente: naquela época, tínhamos o amparo do vovô Paulinho, médico, que, do centro cirúrgico, nos tranquilizava enviando notícias do neto.
Mas o vovô não estava dessa vez, não estaria nunca mais. E a ausência dele nunca foi tão dolorida pra nós três.
O tempo do hospital, que não funciona como o das batidas de nossos corações, estava ainda mais esgarçado. O anestesista ligou para a enfermagem e avisou que já tinha acabado, que eles já iam descer. Nos postamos em frente ao elevador, mas nada. Os minutos entre a ligação e o sinal de parada naquele andar parecem ter sido infinitos. Tudo demora demais. Há outras urgências em curso.
Já no sábado, dia 4, enquanto o Francisco acordava da anestesia, eu virava de um lado para o outro no sofá do quarto do hospital, as horas passando sem eu ter noção, com as cortinas fechadas, se já era dia, as enfermeiras entrando para dosar os remédios, a nutricionista ligando para falar da dieta, o médico passando a visita e liberando a alta, e toda a nossa atenção restrita a entender como seria a rotina dos dias. Nisso, a vida acontecendo lá fora, o Brasil vivendo extremos de euforia e tensão em cobertura de tempo real.
Naquele dia, eu deveria ter viajado a Petrópolis para acompanhar o lançamento do livro Direito de e para todos, da ministra do STF Cármen Lúcia, que falaria numa mesa com João Candido Portinari e o jornalista Jamil Chade. Tiraria fotos do dia lindo no Palácio de Cristal, encontraria amigos do mercado editorial, provavelmente tietaria o novo imortal Ailton Krenak (o livro dele já estava na mala semi-arrumada), aplaudiria a fala da ministra (que foi ovacionada pela plateia ao falar de paz, direitos humanos, Antígona, Zuzu Angel, música e liberdade) e festejaria o primeiro festival literário internacional da cidade imperial.
À noite, no hotel, leria um dos livros dos clubes de leitura de maio e lamentaria ter perdido o show da Madonna, ao vivo, na praia de Copacabana - para onde eu tinha começado a me programar para estar, não fosse o lançamento da ministra.
Um dos momentos mais emocionantes do show da Madonna: a homenagem às vítimas da AIDS
Fiquei em Laranjeiras, me aproveitei da chegada de mamãe para apagar por duas horas depois de voltar do hospital e vi o show da Madonna com a companhia luxuosa dela, do Pedro e do Francisco, que gostou de saber que a cantora pop da geração da mãe dele já tinha aberto caminhos pela liberdade sexual das mulheres, pela vida da população LGBTQI+, contra o racismo e as manobras do patriarcado em geral. Foi um show político, emocionante e restaurador em vários sentidos. Fomos dormir anestesiados, dessa vez pela injeção de alegria da material girl.
Foi só no dia seguinte que acordamos para a tragédia que ocorria no Rio Grande do Sul. Não era só mais uma das enchentes que assolam as cidades, que, como cariocas e fluminenses, já estamos mais do que escolados. O drama estava aumentando, as imagens e os relatos em grupos de zap começaram a chegar com uma frequência avassaladora.
Nesse mesmo domingo, em que acordamos mais aliviados com o “sucesso” da cirurgia do Francisco, minha mãe sofreu um acidente doméstico que nos deixou em alerta de novo: queimou o pé com água fervendo depois que a alça de nossa chaleira velha soltou. Na semana anterior, aliás, eu tinha levado um tombo da escada depois que duas sandálias tinham descolado.
A lição da minha mãe (mães têm sempre razão): Não tentem consertar o que não têm mais conserto.
Tanto a chaleira quanto as sandálias tinham sido “restauradas” para uso às vésperas dos dois incidentes.
Mas e os estragos das chuvas, esses ainda têm conserto?
Nunca faltei às aulas de geografia, mas tirei apenas notas suficientes para ser aprovada. A geografia política me interessava mais que a física. Como jornalista, no entanto, dediquei os últimos dias a tentar entender por que o Guaíba não é rio, por que os ventos impedem o escoamento mais rápido das águas da Lagoa dos Patos e por que a atmosfera estava fazendo com que chova no Sul e arda de calor aqui no Sudeste. Aprendi também, com as meninas do Sul, o que é “boca de lobo”. E que a cidade fica em uma área baixa e os rios, esses verdadeiros, que ali deságuam vêm com força de regiões altas. Ler porque também é difícil crer que uma das capitais do país não tem um sistema seguro de escoamento, dada a sua geografia. Eu não saber é uma coisa, nenhum governante ter feito nada é outra, né?
Imagem de satélite da NASA
Bem, podemos não gostar de ciências, mas hoje é obrigatório entender como o “céu está em queda livre” porque devastamos as florestas, os leitos de rio, as áreas de proteção ambiental, as montanhas e tudo o que é natureza no mundo. A pandemia da Covid deveria ter nos ensinado muita coisa e, em algum momento, tivemos fé de que sairíamos diferentes de tudo aquilo, mas a boiada continuou passando, o garimpo continuou sufocando o povo yanomani e o capitalismo, bem, esse está vencendo a partida. E tem gente ainda negando tudo. Pior: espalhando mentiras.
A maternidade me oferece outra metáfora para a reflexão sobre esta semana: me senti numa montanha russa, com o frio na barriga da partida, a aflição e os medos dos loopings e a alegria da chegada. A vida passa a ser uma emoção permanente depois do parto.
Ontem eu comecei a ler a tradução de um livro de Adrienne Rich sobre maternidade que a Bazar do Tempo vai lançar, feita por Rita Paschoalin, e me deparei com esse escrito dela num diário, logo após ter tido o primeiro filho:
Eu amo meus filhos. Mas é na enormidade e na inevitabilidade desse amor que moram os sofrimentos.
Acho que vale para a vida: amo acordar, tomar café da manhã, botar as roupas para lavar, dar bom dia para os meninos, caminhar (na praia, se possível), fazer o almoço, trabalhar lendo (livros bons como o da poeta acima), comer bem, trocar mensagens com as amigues, ouvir os áudios da minha mãe, estudar, comprar livrinhos e mil etceteras. Mas, no meio disso tudo, a imprevisibilidade e a inexorabilidade da vida, ela mesma, estão sempre a nos assombrar.
Os livros do mês
Em maio, o livro escolhido para o clube de leitura da Janela é o Agosto azul, da Deborah Levy (tradução de Adriana Lisboa). Desde que li um dos volumes da Autobiografia, tinha vontade de ler a autora com o grupo.
Para a disciplina avulsa que estou fazendo na pós de literatura da UFF, fiz algumas releituras: os livros de contos da Silvina Ocampo e Garotas mortas, da Selva Amada (tradução de Sérgio Molina). Finalizei também o delicioso A irmã menor, da Mariana Enriquez (tradução de Mariana Sanchez), de quem li alguns contos também para as nossas aulas. Que sorte essa disciplina sobre ensaios e autobiografias, o meu tipo!
Estou finalizando os dois livros do mês do Clube F., o clube de assinatura da Bazar do Tempo que eu coordeno: A obrigação de ser genial, da argentina Betina González, que confirmou presença na A feira do livro, em São Paulo, e As vira-latas, da chilena Arelis Uribe. Ambos com tradução da onipresente Silvia Massimini Félix. Não disse que era bom trabalhar com livros? Livros bons, claro. Tem um vem aí que comecei a dar uma olhada hoje (não é o da Adrienne Rich citado acima) que chega a coçar os dedos aqui para contar…
No clube da Virginia Woolf, vou fazer a releitura de Ao farol, um dos meus preferidos, e no Instituto Italiano, vou reler também A ilha de Arturo, da Elsa Morante.
Já temos arte e data do próximo encontro do clube de poesia do Círculo de Poemas:
Fui convidada para mediar dois eventos super bacanas em junho. Os dois convites chegaram na semana passada, enquanto eu me recuperava ainda do tombo da escada. As notícias boas e os livros bons chegando ao mesmo tempo que as coisas chatas me fazem voltar no texto ali de cima: a vida é doida demais. E eu nunca vou saber como a gente faz, de verdade, para equilibrar as alegrias e tristezas. Só sentindo…
Até!
Amei! Uma montanha russa...ser mãe e filha. Bjos