Ferrante e Starnone no palco do Teatro Itália, no Rio
A juntar a autora de "A amiga genial" e o autor de "Segredos", o italiano Daniele Luchetti, que dirigiu obras baseadas nos livros de ambos, na noite de cinema e literatura promovida pelo IIC e o 8½
Eu poderia ter passado as duas horas do encontro com o cineasta Daniele Luchetti, na última segunda-feira, dia 1 de julho, no Teatro Itália, no Instituto Italiano de Cultura, só falando das adaptações que ele fez das obras de Domenico Starnone e de Elena Ferrante. Mas o diretor de Segredos, Laços e da terceira temporada da série Amiga genial tem outros filmes belíssimos, como Meu irmão é filho único, A escola e Anos felizes. Vi os três em DVDs, comprados especialmente para o evento, e um emprestado. Dever de casa feito, certo?
Na conversa antes da mesa, que dividi com o diretor da Cinemateca do MAM, Hernani Heffner (meu ex-professor de Cinema na UFF, na década de 2000), e a tradutora Clara Salvador, doutora em Letras com uma tese sobre o prêmio Strega, comentei com Luchetti que perguntaria também de seu trabalho com a adaptação do meu volume favorito da tetralogia napolitana.
(Parêntesis para contar que ensaiei umas frases em italiano com ele).
Eu, Clara, o diretor e Hernani
Mas já no palco, lá pro terço final da conversa, perguntei, enfim, como era a sua relação com Starnone, que foi roteirista do filme “La scuola”, baseado em dois livros seus. O diretor então se antecipou e trouxe logo a Ferrante para o papo. Tive a impressão de que ele não queria se estender muito no assunto. Ele contava que, no caso da série, não podia ter muita liberdade, já que era um livro amado demais e defendido com garras por fãs fervorosas. Contou que só se comunicava com ela por email e que, além disso, teve dificuldades de filmar uma cena de sexo, sob protesto da atriz e de todas as mulheres do set. Ele bateu o pé, mas a cena, logo depois, foi reprovada pela própria Ferrante. Foi a deixa para minha intervenção:
“Então, quer dizer, que está aí a prova de que Ferrante é realmente uma mulher, não é mesmo?”
Eu tenho certeza disso, mas não resisti à provocação. No que uma mulher da plateia também se manifestou, comentando a já tão famosa reportagem que teria revelado a identidade da escritora. A moça, no entanto, não tinha a informação completa e eu resolvi complementar: “a ‘suspeita’ de ser a Ferrante é a tradutora Anita Raja, veja que coincidência, Luchetti, mulher de Domenico Starnone!”
Feliz falando de Elena Ferrante? Sim ou com certeza?
Meio sem graça, ele reforçou o que tinha contado antes, que só se comunicava com ela por email e que, aí sim, várias vezes se encontrava com o casal e se perguntava: “será ela mesmo Elena Ferrante?”. Sem entrar no mérito, pois para nós, Ferranters, o importante está nos livros, nas ideias e em tudo o que ela escreve (libera livro novo, amiga, por favor, a abstinência é difícil demais), foi muito engraçado ver o diretor meio embaraçado quando precisou tocar no assunto. Mas o melhor veio depois.
Luchetti contou mais detalhes sobre a tal cena que precisou refazer (ponto para Ferrante, te amo, mulher) e confessou que, com Starnone, nunca teve problemas nesse sentido. Só faltou chamar o escritor de “parça”, rs. Elena Ferrante só pode ser uma mulher sim, completou. Nós já sabemos, Luchetti. Não precisa nem confirmar o nome dela pra gente.
Eu e a “parça” Aline Leal no cinema pra ver o filme
Segredos está em cartaz na mostra 8½ da Festa do Cinema Italiano. Baseado no livro de Starnone, o filme, segundo o diretor, virou um “thriller psicológico” por sugestão do próprio escritor. É a história de um professor que, atormentado por um segredo que contou num pacto a uma ex-namorada, que fora sua aluna no ensino médio, faz sucesso escrevendo artigos e livros sobre a educação no país. Ele vive em conflito com sua mulher, que vê sua carreira de pesquisadora em Matemática apagada pelo machismo na universidade e prejudicada pelas atividades domésticas redobradas, com as constantes ausências do marido.
No livro, viramos as páginas com ansiedade para descobrir o segredo, enquanto nos irritamos com a falsa modéstia do professor, seu sucesso instantâneo com as mulheres e seus pares e sua insuportável insegurança em relação à ex. Mas, no fundo, também atraídas pelo seu charme e sedução. Isso revela como Starnone tem o dom de escrever bem, criar bons personagens e nos enredar em suas histórias. No filme, o tormento do professor é mais explícito. Ele vê fantasmas, imagina cenas violentas, tende ao suicídio.
Numa conversa com Hernani Heffner antes do encontro, ele me disse que o diretor faz clara alusão e homenagem a Hitchcock e seu Vertigo. Juntos, relembramos a cena de um corvo em primeiro plano, a semelhança entre as duas atrizes principais e vários outros símbolos utilizados pelo mestre do suspense. A rever.
Em sua primeira edição, a Festa do Cinema Italiano também teve a apresentação de um filme de Luchetti, o ótimo Meu irmão é filho único, em que o mesmo Elio Germano, ator que faz o professor Pietro em Segredos, é um jovem que, contrariando a inclinação política de toda a família, se filia ao partido fascista no pós-guerra. É também um filme que mostra os conflitos da juventude e familiares numa Itália dividida politicamente. É terno ao filmar a amizade de dois irmãos, que não desistem um do outro apesar de gostarem de uma mesma moça e estarem em campos políticos opostos. Bonito demais.
Tirando uma casquinha do homem que é amigo do Starnone, minha gente (da Ferrante não sabemos, ehehehehe)
Eu vi também Anos felizes, baseado na vida do próprio Luchetti. O filme narra os conflitos de um casal quase perfeito: ele artista, ela, dona de casa, com filhos bonitos e saudáveis. A família, porém, é atravessada pela falta de perspectivas da mãe, que quer participar da carreira do marido, morre de ciúmes de seu trabalho com modelos nuas e não tem desejos próprios, que não sejam os relacionados ao casal. Atraída por uma galerista, ela decide fazer com os garotos uma “viagem feminista”, na qual é envolta na “poeira erótica” registrada pela Super-8 do filho. São os anos de liberação do divórcio na Itália, de manifestações políticas nas ruas, das lutas das mulheres por liberdade. Luchetti filma as contradições de um marido artista, mas totalmente dependente da mulher, e às voltas com a crise criativa que marcou mais um período de transição na história da arte.
É pena que os dois citados, mais A escola, que assisti numa cópia italiana, sem legendas em português, estejam fora dos streamings. Mais um sintoma da profusão de séries e filmes meia boca disponíveis por aí. Eu, se fosse empreendedora, abriria uma locadora com café aqui nas Laranjeiras.
Já no Centro de Artes UFF
Finalmente, vou ver C’è ancora domani no cinema! Filme do ano na Itália
Sexta-feira é dia de aula na UFF e também de esticar no cinema da universidade, com preços em conta e projeção nota 10 (sem trailers abusivos também). É a dica para quem mora em Niterói e quer aproveitar para ver os italianos da temporada atual do 8½.
Enquanto isso, o Cinesystem, na praia de Botafogo, está devastando a programação mais alternativa aos Cinemarks da vida. Que tisteza!
Que saudade eu estava de escrever por aqui. Quem me acompanha no Instagram, deve ter visto que junho foi um mês intenso, que culminou, na última semana, com os clubes Janela para o mundo (terça e quinta), de leituras italianas (quarta), de poesia do Círculo de Poemas (sexta) e da Virginia Woolf (sábado). Com uma aula na UFF no meio, os trabalhos na Bazar do Tempo e o encontro com o Luchetti na segunda. Para tudo isso, são horas e horas de leituras, preparação e pouco descanso. Não sobrou tempo, embora não me faltem as ideias.
Até a próxima semana!
Amei a alfinetada e a prova definitiva do que todas já sabíamos!
E já coloquei na agenda vários filmes do festival italiano pra ver no Cine UFF.
Amei, amiga!! Ferrante é mulher e basta!! Não tem blá-blá-blá!! Texto lindo!! Delicioso!!