Na espiral do tempo
Voltar à UFF e participar de um clube de leitura de poesia me fizeram voltar aos tempos em que eu intuía o que Virginia iria me ensinar anos depois: é preciso ter independência financeira para sonhar
Campus da UFF no Gragoatá, prédio de Letras
Quando fiz 15 anos, idade do meu filho agora, comecei a pensar em ter um emprego. Antes mesmo de refletir sobre carreira. Eu queria, na verdade, um salário e independência financeira, isso sim. E nem tinha lido a Virginia Woolf ainda, hein! Aprender a dirigir era meu segundo plano porque foi mais ou menos nessa época que me dei conta de morar longe de tudo o que almejava. Eu precisava de um motor para apressar minhas chegadas e saídas.
Um pouquinho antes disso, saí em excursão com o colégio, atravessei a Ponte e cheguei ao Aterro do Flamengo deslumbrada. Nem foi o grande parque e a natureza o que me assombraram, mas o tamanho dos prédios, em sequência. Também não me esqueço do dia em que mamãe nos colocou num ônibus e foi com a gente até o Rio Sul. Eu lembro do vestido roxo que comprei na C&A, uma loja que eu só conhecia da TV. Shopping grande, luzes, asfalto lisinho, placas com nomes de rua, uma urbanidade que eu desconhecia na cidade onde morava - tão longe, tão perto…
Em janeiro daquele 1991, ainda aos 15 anos, conheci o Maracanã. Na entrada, milhares de pessoas se amassavam para passar da catraca correndo e pegar o melhor lugar na pista do show do Rock in Rio II. Entramos, subimos de elevador e quando a porta abriu e o estádio apareceu na minha frente, eu levei um susto. Uma emoção que eu tive que batalhar muito pra ter sentido aquele dia: juntei o dinheiro da mesada e comprei o ingresso à revelia de papai e mamãe. Ah, como era bom ser rebelde.
Em casa, me chamavam de ovelha negra. Eu queria trabalhar e ter carro pra justamente fugir do meu destino. E estudava. Muito. Foi nessa época que comecei a sonhar e realizar os sonhos. Aos 18, entrei na universidade pública. Aos 19, passei num concurso da prefeitura de São Gonçalo, onde morava. Conciliava estudo e trabalho e ficava revoltada de não poder ficar nas chopadas de Niterói por morar longe.
Na biblioteca da UFF, descobri o mundo e nele tinha mais letras que números. Era hora de trocar de curso. Descobri uma prova interna, super disputada, e passei em terceiro lugar, o que me dava o direito de entrar na comunicação no início do ano seguinte.
“Nenhum ser humano deve fechar a janela para a paisagem”.
(Virginia Woolf, em Um quarto só seu)
Sem nenhuma orientação, assim que comecei a fazer publicidade me dei conta que eu tinha jeito mesmo era pro jornalismo. Implorei à coordenação que me deixassem trocar. Obrigada, professor Serra, que esteja fumando seu cachimbo cheiroso em algum lugar legal desse mundo. Mudei pra jornalismo no terceiro período, já arcando com as prestações do Fiat Uno que convenci papai a me ajudar a pagar.
Minha primeira conquista foi conseguir subir e estacionar nas ladeiras de Santa Teresa com ele, tendo os amigos da nova faculdade como caronas e testemunhas. Me sentia num filme atravessando a Ponte Rio-Niterói dirigindo meu carrinho de solteira (numa manhã de domingo, voltei dentro dele, mas do alto de um reboque, numa das maiores aventuras da noite de uma papa-goiaba em terras cariocas).
No mesmo semestre em que entrei no jornalismo, fui indicada pelo professor Alceste Pinheiro para fazer estágio numa assessoria de imprensa na rua da Assembleia, 10, centro do Rio. O professor ficou impressionado com a matéria que lhe entreguei, e que, quando sugeri, ele disse que era “perfumaria”: uma entrevista com Jesse Jane, historiadora que tinha assumido o cargo de diretora do arquivo do estado do Rio, o mesmo que guardava os documentos proibidos em que ela e outras centenas de militantes da esquerda armada figuravam como terroristas. Eu perdi esse texto, uma pena. E não gravei a entrevista. Mas foi com ele que cheguei ao mercado de jornalismo, o que me dá o maior orgulho.
Os primeiros anos na faculdade foram inesquecíveis para a menina de Niterói, levada para morar em SG, e que projetava um futuro diferente do de sua família, mas ainda não sabia bem qual era. Ler Marx, ver filmes do Cinema Novo, descobrir a poesia de Maiakóvski, Ana C., frequentar sebos e livrarias, estudar o advento tecnológico da guerra do Golfo, debater o cinema russo, ler poemas ao ar livre no anfiteatro do campus, ter aulas com um poeta (Afonso Henriques) e com o biógrafo de Graciliano, Vianninha e Henfil, ser orientanda desse último, Dênis de Moraes, professor exigente, que fazia cara feia se eu me atrasasse, ter bolsa de pesquisa da Faperj e depois do CNPQ, chorar com Drummond, pular da Estética da fome (de Glauber Rocha) pra Frantz Fanon (citado por ele), me emocionar com as histórias de militantes presos, torturados e mortos durante a ditadura (que na minha casa nem existia), entrevistar a mãe do cineasta baiano para o jornalzinho do grupo de amigos do jornalismo, chorar de novo ao ver o jornalzinho pisado no chão, jogado por algum estudante displicente que preferia dançar forró na festa junina a dar atenção pra esses calouros chatos que se achavam o último biscoito do pacote…
O final do curso se aproximava e, com ele, as tensões pré-emprego. Se até ali, tudo o que eu queria tinha acontecido, o caminho seria mais árduo e muito mais competitivo dali em diante. A prova para entrar no estágio do Globo encheu o auditório de mil lugares do jornal em dois dias seguidos. Das 16 pessoas que entraram, dois eram da PUC, 12 da UFRJ e quatro da UFF, contando comigo. O nível da turma era altíssimo. Nessa altura, eu estudava francês e tentava praticar como dava o inglês. Já tinha me mudado de novo pra Niterói, mas morar do outro lado da ponte era puxado. Não tinha onde estacionar o Fiat Uno nem havia dinheiro pra gasolina. Era enfrentar a Central do Brasil todos os dias, ida e volta, jantando Fandangos. Ou pegar um ônibus até a Praça XV e atravessar a Baía de Guanabara de barca, em vésperas de feriados.
Deve ter sido nessa fase de cansaço pela jornada de trabalho e estudos, aliados à ansiedade de um futuro que eu temia não realizar, que eu larguei de mão a poesia. Veio um namoro sério, depois outro, as noites na Lapa (ok, um tipo de poesia), os cinemas raros do fim de semana (era preciso se formar). Fui contratada como repórter trainee no jornal e nunca mais parei de trabalhar.
Aí os objetivos cambiaram bastante: uma casa, um casamento, um filho, o FGTS depositado de todo mês. É mais ou menos quando a gente se esquece de ver as coisas como criança. É lógico que alguns momentos de epifania continuaram a acontecer, como no dia em que chorei vendo um Van Gogh em Nova York. Aquele momento de ser do qual Virginia nos falou, em que você se vê no espelho (tal como o Vitangelo Moscarda de Pirandello e se dá conta de quem é, ou deve ser ou quer ser). Eu chorei quando entrei com meu filho no carrinho que nos levaria até o Magic Kingdom (eu, que via os filmes de Eisenstein e vociferava contra o imperialismo, etc e tal). Eu, filha de papai, que nunca botou os pés num avião, mas intuiu que a educação me levaria onde eu quisesse, até na Disney, pra dar uma alegria imensa ao filho. E tirar foto no castelo da Cinderela também, vai. Fui uma leitora de histórias de princesas sim.
Por falar em papai de novo, foi ele que me ensinou a dar tempo ao tempo.
É o que eu tenho feito: na semana passada, o looping foi voltar aos bancos da UFF para cursar uma disciplina avulsa no Mestrado de literatura - um curso que pensei em fazer naquele longíquo vestibular de 1993. E participar, ao lado do poeta e livreiro Leonardo Marona, da primeira noite do clube de leitura do Círculo de Poemas. Na areninha infantil da Travessa de Botafogo, meninos que me fizeram lembrar dos dias em que enchíamos balões de gás com poesia dentro para enfeitar as festas no campus da UFF. Era bonito demais acreditar no poder da literatura (bem, nisso ainda acredito).
Como é bom insistir nos sonhos. Ano passado, me reprovaram, mas esse ano eu tento de novo. O percurso, mesmo acidentado, ensina. Tudo tem seu tempo, como dizia seu Luiz Carlos Lamego.
Mais um texto-viagem, daqueles que fazem a gente voar longe… Sua trajetória é linda, Claudinha!
tudo tem seu tempo! que texto emocionante 🧡