A epifania de pertencer a uma geração
A guerra inventada com o corpo, a paz alcançada com o tempo, o envelhecimento compartilhado e o valor de parecer quem realmente somos; com Annie Ernaux, Fernanda Montenegro, Simone de Beauvoir e Helô
Essa mulher de 49 anos dançando no dia de seu aniversário levou pelo menos uns 20 para se entender com o seu cabelo. Isso depois de fazer escovas e alisamentos (“só na raiz”) e passar noites e mais noites com meia-calça na cabeça para abaixar o volume dos fios pensando o que faria com aquela touca improvisada no dia em que tivesse que dormir com um namorado… Quando descobriu que os cabelos cacheados eram seu charme, era quase tarde demais. Eles tinham perdido as ondas e ela teve que nadar muito para não morrer na areia com seus cabelos artificialmente lisos. Passou, então, a fazer o tratamento contrário, com produtos para cachear. Que não existiam no Brasil quando era uma menina achando que o gel “new wave” resolveria seus problemas.
Esse corpo também guardava outros traumas. No início da adolescência, era magro demais para vestir P de adulto, e comprido demais para caber no tamanho infantil. Um salve às calças bag de cintura alta da finada Philipe Martin, as únicas que se adequavam à cintura de pilão e aos ossos do quadril avantajado, além de disfarçar as pernas e canelas finas. Até encorpar e perceber que a beleza não estava em ter a simetria perfeita, muitas lágrimas foram desperdiçadas.
A barriga sempre foi motivo de comentários. Ela tem uma foto na piscina de um clube com uma barriguinha saliente de criança que parece ter se instalado ali para todo o sempre. Antes e depois da primeira e única gravidez, várias pessoas perguntavam se estava “esperando neném”. Uma vez, já trabalhando na redação de um grande jornal, uma jornalista antiga falou bem alto sobre a sua pequena protuberância e constrangeu até quem não tinha nada com isso. Quando foi que as pessoas acharam que podem comentar as características físicas dos outros, hein?
Os seios em formato de pera foram outro tormento, pois a impediram, a vida inteirinha, de usar vestidos de alça fina, já que esses não escondiam outra alça, a dos sutiãs. O primeiro sutiã, aliás, foi guardado até alguns anos atrás, pela mãe, e ela jogou fora no dia em que percebeu que a lembrança não só não fazia sentido como a incomodava demais. Para resolver sua relação com eles, foram mais de 30 anos. Bota uns 40 na conta.
Depois de amamentar, ela simplesmente não queria voltar ao peso de antes, pois isso significava ver murchar os seios. Então, o dilema era: perder a barriga compensava vê-los despencarem? A criança acordando de duas em duas horas até os 2,5 anos de idade e a preocupação da mãe era voltar ao corpo de antes, coisa praticamente impossível, pois… o corpo muda mesmo, minha gente.
Leiam o livro da Renata Corrêa, uma homenagem a mulheres como sua vó e todas as que abriram caminhos para nós e que merecem ganhar estátuas públicas
Um dia, a Renata Corrêa, roteirista de TV, feminista, linda, mãe de uma menina de dez anos, colunista de uma revista feminina e autora de Monumento para a mulher desconhecida: Ensaios íntimos sobre o feminino, escreveu sobre os vários tipos de seios, a começar pelo seu, que estava longe do ideal de beleza vendido nos consultórios de estética e capas de revistas. Bingo! Num dos modelos mostrados, havia um parecido com o seu. Passou a reparar em outros seios e, quer saber?, fez as pazes com as suas perinhas. Será que a Renata tem ideia do alcance de seu texto? Tomara.
Há umas cenas do livro Peitos e ovos (de Mieko Kawakami, com tradução de Eunice Suenaga), aliás, em que uma das personagens, paupérrima, quer juntar dinheiro para botar silicone. A situação é tão fora de propósito… mas não é que a mulher dos 49 ainda pensa, vez ou outra, se valeria a pena fazer uma cirurgia? Aí se lembra que já operou o pulmão, por questões de saúde, e arquiva a ideia rapidinho.
Mas, enfim, depois dos 40, com filho, casa, marido, profissão, trabalhos novos surgindo, eis que aparece também um novo detalhe que tinha passado despercebido até a era das reuniões por zoom: cadê os lábios grossos que estavam aqui até outro dia? Até quando mesmo? Ela vivia iludida ou era verdade que a avó de seu marido a comparava a Julia Roberts, exatamente por causa do rosto fino e a boca carnuda? Então era por isso que as mulheres fazem preenchimento labial, quando percebem que a boca também vai murchando com o tempo?
Por que, simplesmente, as mulheres não se conformam com seus corpos, mesmo depois de se apaziguar com as suas questões da adolescência e ter que voltar a lidar com fantasmas criados assim, de repente, em reuniões de zoom com mulheres mais jovens?
Bem, vou falar em primeira pessoa logo. A mulher da foto, obviamente, sou eu. Aos 49 anos, tendo que lidar com o corpo da mãe de quase 80 e das amigas do filho de 15 e 16 anos, é impossível não cair na tentação de ter que se haver com o tempo. Isso, para as mulheres, têm um peso enorme. Encarar no espelho e nas fotos postadas nas redes sociais o que nos tornamos com o tempo é um exercício diário - muito mais cansativo do que as horas de musculação ou outras atividades físicas que precisamos fazer para manter a saúde e as taxas em dia. Ser mulher é estar o tempo inteiro em conflito com o corpo, como se já não bastassem as batalhas hormonais de toda uma vida.
Self-portrait at sixth wedding anniversary, de Paula Modersohn-Becker, artista alemã presente no livro The story of art without men, de Katy Hessel
No meu caso, as leituras feministas ajudaram muito e nisso eu lamento ser da geração que viveu um vazio político em relação às lutas das mulheres que vieram antes. Crescer nas décadas de 80 e 90 sendo assediada sem saber nomear as violências cotidianas, sem perceber o aprisionamento de mães e avós num espaço pré-determinado às mulheres, com poucas exceções, achando muito legal receber flores no 8 de março e, coisa de mulher, achar absolutamente normal sofrer com cólicas e tristeza os dias de menstruação.
Porém, mesmo com as mais velhas retornando para dizer que algo continua dando errado e precisamos alterar a rota, as mais jovens gritando que são donas de seus narizes e os livros nos dizendo que nosso lugar é onde a gente quiser e que a ditadura da beleza não pode nos aprisionar, nós capitulamos de vez em quando. Nos assustamos diante do espelho, reparamos nos mínimos buraquinhos que insistem em aparecer nas gordurinhas acumuladas pelos anos de experiência…
Nessas horas, como é bom ter amigas com quem conversar. No zap do grupo feminista da professora Juliana Diniz, trocamos muitas ideias sobre esses assuntos e uma levanta e apruma a outra. Nossa, eu queria pesquisar mais a fundo as mudanças que já alcançamos com as leituras e os bate-papos cotidianos no grupo. A Juju e todas nós reconhecemos que, juntas, somos mais. Por isso, o patriarcado sempre fez de tudo para nos separar.
Na tarde que antecedeu a festa de aniversário, passei horas conversando com amigas de velhos tempos de jornalismo diário. Com mais ou menos a mesma idade, nós temos questões muito parecidas: a falta de memória, a necessidade de se atualizar profissionalmente, as intempéries dos relacionamentos amorosos. Saí renovada, pois elas me lembraram que nossas rugas dizem muito sobre nós: que amadurecemos, que sabemos mais que antes, que continuamos inteligentes, emocional e intelectualmente. Que estamos firmes para aguentar o tranco pelas mães e pais, e filhos também.
Quando deito à noite e vejo as rugas do meu companheiro, quer dizer que temos uma estrada juntos e até aqui nos ajudou o amor.
Na festa da madrugada do dia 17, dancei muito. À meia-noite, como já é tradição em suas festas, o DJ Janot mandou a clássica do Ira!:
Juventude se abraça
Se une para esquecer
Um feliz aniversário
Para mim ou pra você…
Naquela noite, outras duas colegas de tempos atrás também envelheciam comigo na cidade. A música foi uma epifania que me transportou para os anos 80/90, quando o rock Brasil era o must dance das festinhas. Chegamos até aqui com nossos corpos magros, gordos, insubmissos, fora do padrão, assimétricos, um pouco gastos, cansados, porém com a vitalidade do pertencimento a uma vida compartilhada. Tudo bem que a música tava um pouco alta e as luzes das discotecas hoje incomodam os olhos que precisam de lentes multifocais, né?
O jovem e o tempo de Annie Ernaux
Annie Ernaux caminhando em Paraty, ao lado da editora Rita Mattar e de seu filho. A foto é do momento em que cheguei ao centro histórico e dei de cara com a cena. Não resisti a tirar a foto, discretamente…
Há dois anos, na Flip, Annie Ernaux falou sobre a consciência da idade, aquele período em que você pode ver tudo o que ficou para trás, mas não pode mais imaginar um futuro, pois que a vida vai se aproximando do fim. Em O jovem, livro que ela tinha lançado no fim daquele 2023 em que ganhou o Nobel e veio ao Brasil, a escritora francesa escreve sobre como a relação com um rapaz mais novo a fazia percorrer todas as épocas de sua vida. “Ele concretizava o meu passado”. Annie Ernaux andou pelas ruas de pedra de Paraty, distribuiu autógrafos durante horas e emocionou todo mundo com a beleza e a vitalidade de seus 80 anos.
“Ao lado dele, minha memória parecia infinita. Essa espessura de tempo que nos separava era de uma grande delicadeza e dava mais intensidade ao meu presente. Não me ocorria o pensamento de que essa minha longa memória do tempo de antes do nascimento dele fosse o par, a imagem inversa, da memória que ele teria depois da minha morte, com eventos e personagens políticos que eu nunca terei conhecido. De todo modo, pela sua própria existência, ele era a minha morte.”
Fernanda Montenegro, aos 95
No último domingo, depois de passar a noite dançando e bebendo, a tarde comendo e festejando com a família, fui ao teatro com a minha mãe ver Fernanda Montenegro recitando Simone de Beauvoir. Aos 95 anos, ela está comemorando 85 de carreira. Escolheu para marcar a data, iniciando no dia 8 de março, ler trechos de A cerimônia de adeus, em que Beauvoir rememora seu encontro, apaixonamento e relação eterna com Sartre. No texto, a escritora francesa reflete sobre a juventude e a velhice, a ruína do corpo físico e a despedida de seu grande amor. Na adaptação para o teatro, Fernanda lê trechos que parecem de outro livro de memórias da autora, quando ela conta sobre a descoberta do sexo, com Sartre, suas alunas e outros homens, e fala da liberdade que experimentou ao escolher não casar e não ter filhos.
“Sua morte nos separa. Minha morte não nos reunirá. Assim é: já é belo que nossas vidas tenham podido harmonizar-se por tanto tempo.”
No dia dos meus 49 anos, com o batom que minha mãe me emprestou, eu vi a grande dama do teatro brasileiro lendo a grande dama do feminismo francês, num teatro lotado, embasbacado com a sua voz, sua postura, seus cabelos brancos e toda a experiência que seu corpo carrega. De uma beleza inacreditável.
Deixo, por fim, o alerta de Heloisa Teixeira (ex-Buarque de Hollanda), no lançamento de seu livro Rebeldes e marginais: não digam para ninguém que a pessoa está linda, “nem aparenta a idade que tem”. Ora, vamos parecer quem somos.
Lindo texto ❤️
Que delícia de texto, Claudia! Como companheira de geração (e de memórias, angústias e desejos), aproveito para lhe parabenizar pelo aniversário -- sempre é tempo de celebrar! Que você continue sendo a mulher que é, com prazer e em plenitude!