A flor apanhada no chão e os "fósforos riscados na escuridão"
Umas linhas sobre "Ao farol", de Virginia Woolf, e o debate sobre a autoficção em "Um crime bárbaro", de Ieda Magri; depois da poesia, ouvir o mar para recomeçar
Estava caminhando de volta para casa, apressada para uma reunião de trabalho, quando avistei uma árvore que se destacava na paisagem verde pela cor rosa de suas flores. Uma cena natural num dos lugares mais belos de uma cidade que arde os olhos de tão bonita. Mas que sempre me captura. Mudei a rota, tentei achar o melhor ângulo para uma foto e pensei: é tão bom passear aqui quanto no Central Park.
Que bobagem comparar as duas metrópoles, mas a frase deve ter surgido de um estado de ânimo que me ronda nos últimos meses. Sem férias há mais de três anos, sem recursos financeiros para sonhar com uma próxima viagem, extremamente cansada, física e emocionalmente, eu preciso encontrar no meu cotidiano alguma beleza para seguir em frente.
Fotografei a árvore, reparei em funcionários da prefeitura trabalhando ao redor meio alheios ao parque, observei as pessoas que passavam de bicicleta sem notá-la e me aprumei para voltar. Mas meu olho tropeçou numa flor caída. Recolhi-a, tirei a areia das pétalas, fiz novas fotos, até um pequeno vídeo, tão feliz porque ela era da cor da minha camiseta.
Apanhar a flor e registrá-la imediatamente me transportou para a recente releitura de Ao farol, de Virginia Woolf, e sua reflexão sobre a passagem do tempo, a fixação de um instante, a admiração pela perenidade das montanhas, do mar e de tudo que se mantém intacto na natureza, ao contrário das pessoas, que morrem, das casas, que são bombardeadas durante as guerras ou abandonadas pelas famílias que se desintegram. Como a dela.
Na sexta passada, eu perguntava à professora Eurídice Figueiredo, que, com a professora Lívia Reis, estão à frente da disciplina “Formas do (auto) biográfico”, se o romance de Virginia podia ser enquadrado na categoria de autoficção. Estão ali, para quem conhece a vida da autora e também a sua obra, porque ela fala dos pais nos diários e no livro de memórias (todos publicados pela editora Nós), traços da vida de seu pai e de sua mãe, do irmão e da irmã morta e, espelhada na pintora Lily Briscoe, o seu próprio processo de criação e a citação à irmã pintora Vanessa Bell.
A professora falou disso na aula, e, finalizada a releitura, ficou tudo mais nítido: quem não conhece a vida de Virginia e as suas outras obras, lê o livro imaginando que ali está parte da vida da autora? A resposta é não. Mesmo que as notas e os textos de apoio falem da inspiração da escritora, eles também reforçam que o texto se sobressai mais pela sua forma literária e pelo que nele, no próprio texto de Ao farol, Virginia indica como caminhos possíveis e impossíveis de recriação do real.
“E isso, pensou Lily, pegando a tinta verde com o pincel, isso de inventar cenas sobre elas, é que chamamos de ‘conhecer’ as pessoas, de ‘pensar’ nelas, de ‘gostar delas’. Nenhuma palavra disso era verdade; ela o tinha inventado; mas, de qualquer maneira, era desse jeito que as ficava conhecendo. Ela continuou a cavar túneis para encontrar seu caminho na pintura, no passado.” (Virginia Woolf, Ao farol)
No posfácio da edição da Autêntica, a biógrafa Hermione Lee cita um trecho do diário de Virginia, no qual ela diz querer inventar uma palavra nova para definir seus livros. No caso de Ao farol, em vez de ‘romance’, ‘elegia’. No texto de apresentação do Diário III (também publicado pela Nós), a tradutora Ana Carolina Mesquita ressalta que a escrita de Ao farol aconteceu num período turbulento, talvez pelo mergulho profundo que a autora fazia na memória de seus dias felizes com a família em St. Ives, lugar que inspira o cenário do livro. A morte da mãe e o fim daquele idílio tinham desencadeado a primeira grande crise nervosa da inglesa. E era material fértil para a escrita dessa obra com pitadas autobiográficas.
“Tenho de contar com o próprio diabo para não açoitar o meu cérebro a tarde toda também. Vivo completamente dentro dele, venho à superfície de modo um tanto obscuro, & frequentemente não consigo pensar no que dizer quando saímos para dar a volta na praça, o que é ruim, eu sei. Talvez seja um bom sinal para o livro, porém.” (Virginia Woolf, Diário III)
O processo de escrita do livro está registrado de forma esparsa no diário, em meio a reclamações sobre cansaço (“Estou um tanto cansada, um pouco cansada, de tanto quebrar a cabeça com Ao farol", escreve), o dever de ler e resenhar livros, os compromissos pessoais e o medo, mesmo já sendo uma autora famosa e lida, de ser criticada. De não ficar para a posteridade. Tema que está no livro também, mas ligado às preocupações do Sr. Ramsay/Leslie Stephen, que era um homem de prestígio, porém sem o brilhantismo e a fama dos grandes escritores.
“É permitido, mesmo a um herói agonizante, imaginar, antes de morrer, como os homens falarão dele no futuro. Sua fama dure, talvez, dois mil anos. E que são dois mil anos? (perguntou ironicamente o Sr. Ramsay, contemplando a sebe). O que são esses anos todos, de fato, quando, do cimo de uma montanha, se contemplam lá embaixo as vastidões das eras? A própria pedra que se chuta com a botina sobreviverá a Shakespeare.” (Virginia Woolf, Ao farol)
Virginia Woolf e Vanessa Bell, sua irmã, jogando cricket em St. Ives, casa de praia da família
Estão no livro outras obsessões de Virginia, como o espaço das mulheres na sociedade, a soberba, a arrogância e a necessidade masculina de desvalorizar a intelectualidade e a inteligência delas, o contexto social e histórico da Inglaterra, o espanto em relação à guerra e suas consequências nefastas na vida e na sociedade, as obrigações impostas pelo casamento, as relações humanas e a dificuldade de conhecer realmente o outro e a si mesma. Logo, a impossibilidade de retratar o real, de aspirar à totalidade, de não recorrer, em seu tempo, a uma escrita fragmentada. Afinal, se pergunta Lily Briscoe:
“Qual é o significado da vida? Isso era tudo - uma questão simples; uma questão que tendia a nos envolver mais com o passar dos anos. A grande revelação nunca chegara. A grande revelação talvez nunca chegasse. Em vez disso, havia pequenos milagres cotidianos, iluminações, fósforos inesperadamente riscados na escuridão; aqui estava um deles.”
Na orelha da edição da Autêntica, Tomaz Tadeu, tradutor desse e de boa parte da obra de Virginia, escreve que “uma obra literária, poesia ou ficção, não é feita dos atos e eventos banais que constituem o material da vida cotidiana. Mas de revelações, de visões, de epifanias. A artista é uma vidente. Ela vê o que não vemos. E o ato artístico supremo consiste em transformar visões em palavras, em frases, em verbo.”
É como um “fósforo riscado na escuridão” de sua memória que um fato nada banal do seu cotidiano (o suicídio de uma estudante na universidade em que leciona) leva a escritora Ieda Magri ao seu passado numa pequena cidade do interior do Sul do país. Numa comunidade rural, uma menina desaparece e é encontrada morta, brutalmente, no início da tarde de uma sexta-feira em que havia ensaiado para um concurso de beleza na escola. Ieda era uma garotinha, mas lembra das marcas que o assassinato e a impunidade dos assassinos deixou em sua família e na comunidade local.
É para percorrer as fendas dessa memória, em boa parte fabricada pelas histórias que ouviu na infância, que ela retorna ao local e decide escrever “Um crime bárbaro”. Na obra, alterna as vozes narrativas e envolve as leitoras e leitores nas reviravoltas tanto de seu processo de escrita quanto de sua própria investigação da história.
A escritora também divide conosco a sua preocupação ética em não inventar ou forçar-nos a tomar partido por um ou outro lado nas várias versões que a história, que se tornou uma espécie de lenda local, ganhou. Um membro de sua família tornou-se suspeito. Ela sabe que há intrigas locais. Que a investigação foi abafada à época e teme pela vida dos que restaram, enquanto ela veio fazer a vida na metrópole do Sudeste.
Ao longo do livro e em seu epílogo, ela cita suas referências, Ricardo Piglia, Alejandro Zambra e Selva Amada (não por coincidência todos argentinos) e o livro, que será debatido nesta sexta, na disciplina da professora Eurídice Figueiredo, citada acima, ganha mais sentido em nossos debates sobre autoficção ao longo das últimas semanas.
Já mediei uma conversa com Ieda Magri e a escritora Carola Saavedra na livraria Blooks e minha expectativa é imensa pelo reencontro.
Também amanhã é dia do Clube de Leitura do Círculo de Poemas, na Travessa, com o poeta Leonardo Marona.
Sábado, tem o clube “Quem tem medo de ler Virginia Woolf” na Janela, também com minha mediação.
Domingo, espero, vou à praia (se fizer tempo bom) tentar sentir as ondas do mar, que segundo Virginia, é “ouvido todo o tempo” em O farol.
❤️❤️❤️❤️❤️