Dante, Ferrante e as mulheres da Comédia
Um ensaio em construção sobre o texto da escritora italiana que me levou ao poeta florentino e ao desejo infinito, e fracassado de antemão, de saber mais e mais
Pia de Tolomei, por Dante Gabriel Rossetti. Personagem do canto V do Purgatório de Dante
Em um ensaio de 2021, Elena Ferrante escreveu sobre o seu amor por Dante Alighieri, desde que o leu na adolescência, e o que, para além do aprendizado clássico sobre o poeta florentino, mais lhe chamou a sua atenção na escrita da Divina Comédia e de seus tratados: “Dante narrava obsessivamente o ato de escrever, em sentido literal e figurado, representando continuamente sua potência e sua inadequação, a transitoriedade do bom resultado e o fracasso.”
“A costela de Dante”, publicado na coletânea As margens e o ditado (Intrínseca, tradução de Marcello Lino), segue então elencando exemplos de como o autor “não sabia evitar a ideia de que encerrar a experiência humana no alfabeto é uma arte exposta às desilusões mais amargas”: transcreve versos, cita os poetas presentes nos cantos, reflete sobre a capacidade dele de se deslocar para o “outro” e fala sobre sua potência de identificação.
À medida em que se familiarizava com as referências do autor, Ferrante observou o Dante leitor. Aquele que, ao aprimorar o stil nuovo e inventar uma nova escrita, nunca operava uma transcrição pura, homenagem ou tradução fiel. “Dante, mesmo quando lia versos pagãos ou a Bíblia ou páginas filosóficas, científicas, místicas, entrava nas palavras dos outros de maneira tão íntima que captava os segredos do seu sentido e da sua beleza, encontrando para elas uma escrita sua.”
Treze páginas depois de descrever a sua experiência de escritora e leitora, ela dá uma guinada no ensaio e faz um adendo importante. Ferrante não decidiu escrever o texto só por amor a Dante, mas, sobretudo, pela “sua mais ousada criação: justamente Beatriz.”
“Se me atenho às lembranças de leitora adolescente, devo acrescentar que foi ela quem me fez amar Dante logo de cara. Fiquei imediatamente agradecida a ele por ter representado a si mesmo como um homem medroso, perdido na selva escura, sujeito ao pranto e ao desmaio diante da dor dos outros, salvo por uma verossímil mulher florentina que, primeiro começava o trabalho de salvação recusando-se a cumprimentá-lo e, depois, tendo passado dessa vida para outra outra melhor, reeducava-o ao retirá-lo definitivamente da condição de bobalhão delirante.”
O livro de Ferrante só foi publicado no Brasil em 2023. Assim que saiu, eu li os três primeiros ensaios e o texto sobre Dante deixei em espera até me sentir preparada para entendê-lo. Fiz inscrição logo em seguida num curso online sobre a Divina Comédia, com uma excelente professora, aliás. Mas ler Dante exige a presença, o comprometimento, o descanso. Assisti a algumas aulas, mas não entrei de verdade no texto naquela ocasião. Estava mergulhada em mil outras tarefas e um pouco farta das horas infinitas em frente a um computador (pós-pandemia).
Minha relação com a língua e a literatura italiana começa com Ferrante e entender o ensaio sobre Dante teria que fazer parte dessa jornada. Então, tentei mais uma vez: me inscrevi numa disciplina optativa da graduação de Letras na UFF para estudar o poeta da Idade Média, que seria ministrada por Emanuel França de Brito, um dos tradutores, com Maurício Santana Dias e Pedro Falleiros Heise, do Inferno (os outros tomos ainda estão em tradução e sairão em breve pela Companhia das Letras).
Atravesso a Ponte Rio-Niterói para estar em sala, com ele e uma turma incrível, que tem como monitora uma aluna que eu adoro chamada Beatriz (eu juro!), toda quarta-feira, das 14h às 18h, com um intervalo para um cafezinho. O caminho não é fácil, mas percebo avanços. Já entendo melhor a língua italiana, depois de dois anos de estudo, e consigo, assim, apreciar melhor os versos, comparar as traduções - sempre com a interpretação do professor em sala, claro. Há uma semana, estou relendo o Inferno e o Purgatório numa edição antiga, que ganhei do livreiro da Berinjela Daniel Chomsky (seja amiga dos livreiros!). Trata-se da tradução do Cristiano Martins para a Itatiaia, editora extinta, com o texto só em português, mas com notas fartas que ajudam muito os navegantes de primeira viagem. A cereja do bolo: o livro tem as ilustrações de Gustave Doré.
Foi nessa releitura que encontrei a chave para o trabalho que pretendo apresentar em sala no último dia de aula e que ensaio um pouco por aqui.
Beatriz, Francesca da Rimini e Pia de Tolomei
Francesca da Rimini e Paolo Malatesta, canto V do Inferno, Gustave Doré
Além de Beatriz, que inspirou Dante a escrever a Vida nova e dar a ela um papel central na Divina Comédia (aquela que vem para o salvar, enviando o poeta Virgílio às portas do Inferno para acompanhá-lo, e também para o guiar no Paraíso), duas personagens que estão nos cantos V, uma no Inferno e outra no Purgatório, ganham relevo quando se pretende analisar a presença das mulheres na Idade Média e, claro, na obra dantesca.
Francesca da Rimini era uma nobre de Ravenna que, ao ser flagrada com o cunhado Paolo, é assassinada pelo marido. Leiamos, na tradução do trio Emanuel, Maurício e Pedro:
“‘Nós líamos um dia por prazer
como o amor Lancelote constringiu;
estávamos a sós e sem temer.
Várias vezes o ler nos impeliu
a olhar-nos, desbotando nosso viso;
mas um só ponto foi que nos feriu.
E quando lemos que o almejado riso
fora beijado por tão caro amante,
este, que não será de mim diviso,
a boca me beijou todo ofegante.
Galeotto foi o livro e quem compôs:
no dia, ali, não lemos mais adiante.’
Enquanto aquele espírito isso expôs,
o outro chorava; e na piedade absorto
desmaiei como a quem a morte se impôs.
E caí como cai um corpo morto.”
O que chama a atenção nos versos? Dante está falando de uma personagem real (nota: ler o texto do Auerbach ), uma mulher, nobre, que lê. Neste canto, Dante e Virgílio estão no lugar onde são punidos os pecados carnais, que em vida se deram à luxúria. Ambos, Francesca e Paolo, foram assassinados pelo marido dela e irmão dele.
No canto V do Purgatório, estão os espíritos de pessoas que, ao sofrerem mortes violentas, tiveram tempo de se arrepender. Ali, aparece discretamente outra vítima mulher. Nos sete últimos versos, canto 130 ao 136, na tradução de Cristiano Martins:
“‘Depois que houveres retornado ao mundo,
já descansado deste estrênua via’
_ falou alguém, calando o segundo _
‘recorda-te de mim, que eu sou a Pia;
Siena me fez, e me desfez Marema;
aquele o sabe que a aliança um dia
me deu, ao desposar-me, c’o uma gema.’”
É Pia de Tolomei, que também foi assassinada pelo marido. São dois casos de feminicídio (palavra que entrou para o dicionário Treccani apenas em 2023, na Itália, escrevi sobre isto aqui), nos quais Dante se apieda da condição das mulheres. Na cena de Francesa da Rimini, ele termina o canto caído como “um corpo morto”, ao ver o sofrimento do casal luxurioso.
Dante desmaiado: a fragilidade que impressionou a adolescente Elena Ferrante. Gustave Doré, canto V do Inferno
Ora, não se trata de cair no anacronismo e dizer que Dante, que inventou o mundo medieval em versos perfeitos e traduziu em imagens cinematográficas a filosofia, a religião e a ciência de seu tempo, tenha tido uma visão das mulheres diferente da propagada, por exemplo, por um de seus mestres, Aristóteles. Há exemplos fartos disso na Comédia. No canto XXIII do Purgatório, Dante sonha com uma mulher gaga e vesga, que aos poucos, vai se tornando uma mulher bonita e, com um canto mavioso, diz ser uma sereia a que nenhum marujo resiste. Lemos, com asco os versos que dizem:
“Ainda a sua boca não fora fechada,
que surgia uma dama, santa e presta, junto a mim, pra deixar a outra humilhada.
‘Ó Virgílio, ó Virgílio, quem é esta?’,
duramente chamava, e ele acorria
à da digna mulher grave requesta;
a outra agarrava e a frente lhe despia,
rasgando a roupa e o ventre me mostrando.
E acordei co’ o mau cheiro que vertia.”
É isso mesmo. O ventre da mulher que fedia, encarnando o pecado que levava os homens à luxúria. Dois cantos adiante, ele descreve as mulheres como sendo depositárias do sangue do homem, que, “transformado, desce aonde é curial não nomear, donde verter convém num sangue alheio, em vaso natural.”
“Aí um e outro juntos se detêm,
um disposto a aceitar, outro a fazer,
cônscio da perfeição de onde provém”.
Neste canto, Dante está escrevendo sobre a formação da alma, de natureza humana, a partir do encontro com Estácio. Não é intenção nem pretensão aqui explicar o XXV, mas pinçar dele essa visão de que o homem provê o sangue perfeito que a mulher, recipiente natural, irá receber para formar uma alma virtuosa. Uma ideia da Idade Média, que continuará sendo “aperfeiçoada” até os nossos tempos, quando redpills e incells dizem ter nojo de pensar em partos normais.
Virgílio na poesia e Aristóteles na filosofia, entre outros, são guias e inspirações de Dante na escrita da Comédia e em outros textos como o Convívio (com tradução, pela Penguim, de Emanuel França de Brito), no qual, pelo pouco que pude ler, ele admite, na defesa da escrita em língua vulgar, o acesso que a ela devem ter todos, inclusive “os príncipes, barões, cavaleiros e muitas outras nobres pessoas, não apenas homens, mas também mulheres, muitos e muitas falantes desta língua, pessoas comuns, e não literatos.” É no Convívio que, em sua primeira linha, Dante cita Aristóteles, defendendo que “todos os homens por natureza desejam saber.”
Logo na introdução do primeiro tomo de O segundo sexo, no qual vai nos apresentar ao conceito da mulher construída como um Outro em relação ao homem, Simone de Beauvoir cita algumas frases famosas de Aristóteles sobre as mulheres (“Devemos considerar o caráter das mulheres como sofrendo de certa deficiência natural”) e discorre sobre a narrativa criada por legisladores, sacerdotes, filósofos, escritores e sábios ao longo da História para “demonstrar que a condição subordinada da mulher era desejada no céu e proveitosa à Terra.” Reli os trechos sublinhados para relembrar…
Elena Ferrante, no já citado ensaio, vai destacar que Dante, na Vida nova, representa Beatriz fechada em suas vestes coloridas e compostas, “muito reservada e distante das decotadas florentinas denunciadas por seu antepassado Cacciaguida”. Mas, ao mesmo tempo, é essa mesma mulher que, zombando dele, fará com que Dante sinta primeiro uma vontade de escrever versos e, depois de sua morte, empreenderá um percurso de estudo e autotransformação. Na Comédia, ainda segundo Ferrante, Dante a promove a mulher que fala, talvez como um homem.
Por fim, ela observa que os elementos que fizeram Dante inventar a Beatriz estão nos estudos feitos mais recentemente sobre mulheres que tiveram papéis femininos importantes na Idade Média. Mulheres cultas, que liam e comentavam as Escrituras:
“Dante a imagina, literalmente, como uma mulher que tem entendimento de Deus e linguagem especulativa, modelando-a - gosto de pensar - a partir do eco de figuras como Matilde de Magdeburgo, Hildegarda de Bingen, Juliana de Norwich, Margarida Porete ou Ângela de Folino, magistra theologorum. Faz isso, é natural, atribundo a uma figura feminina competências científico-teológico-místicas que são as suas, extraídas dos seus estudos, de uma de suas costelas.”
Obrigada, Ferrante, por me jogar em mais um vórtice sem fim. Porque ler a Comédia, os comentadores dela, os outros livros de Dante, as novas traduções, me causam um espanto semelhante ao que senti quando conheci a Tetralogia (sem comparar, pelo amor da deusa da literatura, a importância, a forma e a influência de ambas, é só minha experiência de leitora). A cada releitura, quero saber mais e tentar, já tendo consciência do fracasso e da finitude, entender e me deliciar com todas as referências políticas, históricas, sociais e artísticas de um tempo.
Duas dicas: fiquem de olho nos cursos livres da USP e, principalmente, nos de Valentina Cantori. Estou assistindo às gravações de um curso que ela ofereceu no fim do ano passado sobre escritoras italianas da Idade Média até o século XX.
Em fevereiro, a Bazar do Tempo vai lançar Olha-me e narre-me, de Adriana Cavarero, filósofa italiana que é referência de Ferrante em outro dos ensaios de As margens e o ditado. A tradução é de Milena Vargas. O livro será o assunto das próximas news.
doida pra ler adriana cavarero<3