Édouard Louis, o direito de imitar e as epifanias acadêmicas
De quando eu adivinhei (e depois abandonei) minha vocação para a academia na xerox da faculdade; da realização do desejo de estudar italiano para ler Ferrante
Eu estava na xerox da faculdade de Economia da UFF, no início da década de 1990, copiando uns textos, quando tive a primeira epifania acadêmica: quem sabe, um dia, eu também escreveria artigos tão bons quanto os da professora que eu estava lendo. Essa vocação, que acabei não seguindo (uma longa história entre trocar de curso e me encantar com o mundo profissional do jornalismo), surgiu de uma admiração profunda pela pesquisa, pela sala de aula, pela vontade de aprender e ensinar.
Na faculdade de jornalismo, encontrei uma professora de Filosofia (tive sorte de estudar em universidade pública e ter acesso a excelentes professores) que lia Nietzsche em alemão. Ora, coisa comum no ambiente intelectual, mas para uma garota como eu, de uma cidade suburbana, longe dos grandes “centros”, e convivendo com uma família que não teve acesso à educação, aquilo era muito impressionante. Ela contava do processo de formação e disse que, para estudar um autor, era preciso ler na língua dele - ou dela.
Édouard Louis em Paraty
Lembrei desses dois episódios ontem ao assistir, no Youtube, à participação de Édouard Louis na Flip. Na conversa da programação principal com o jornalista e professor Paulo Roberto Pires, ele falou do seu encontro com outro autor, Didier Eribon, e de como, a partir dali, teve vontade de imitar o escritor francês. Imitar queria dizer: ler livros, visitar museus, ver filmes, se embrenhar no mundo das artes e, depois, da escrita, num processo que passou a ser criticado por seus amigos. Ora, disse Louis, os amigos que, por formação privilegiada, já imitavam os passos de seus pais, mães, irmãos. Por que ele, então, não teria direito? Por que nós, dos lugares não privilegiados de classe, não podemos ter o direito de sermos o que quisermos?
De Édouard Louis, eu só li O fim de Eddy, o que, claro, já é muito. É o livro em que revela como cresceu num bairro operário de uma cidade do interior da França, nos revelando pouco antes de Annie Ernaux (que demorou a ser editada no Brasil) um lado desconhecido do país, longe dos salões de Proust e Balzac. É claro que já tínhamos acesso à fúria dos moradores dos subúrbios franceses, apartados da metrópole num sistema precário de moradia, transporte e acesso à renda, pelas notícias jornalísticas. Os desafios da educação francesa e da vida de imigrantes, muito pelo cinema. Mas, na literatura, me parecia novidade. Ainda mais na escrita de franceses, e não da literatura francófona. Pedi de presente e ganhei de aniversário de Elisa Rosa o “Mudar, método”. Também comprei o Monique se liberta em Paraty (minha única aquisição, aliás).
Louis, além da pobreza, enfrentava a violência extrema de seu pai, da qual era vítima por ser gay e que também a sua mãe, por ser mulher, sofria igualmente. Alcoolismo, depressão, pobreza e violência foram cenários que esmagaram sua existência e identidade. Assim como Ernaux, Louis revelou ser um “trânsfuga de classe”, ao ascender à intelectualidade, ao mundo da escrita e ao transformar experiência em literatura. Também como ela, revelou que escreve com faca, para se vingar.
Muito se tem falado da necessidade de invenção na literatura. Ouvi isso de Lisa Ginzburg, autora com quem estive no pré-Flip no Rio (mediei três mesas em dois dias seguidos), da curadora Ana Lima Cecilio e de vários colegas. Tudo que é muito causa uma certa fadiga, eu concordo. Mohamed Mbougar Saar foi outro escritor que exaltou o mesmo, durante a sua passagem pelo Brasil (seu livro está na minha cabeceira, claro, e será lido durante alguma folga).
Minha cara de enganada por Nino e Ferrante…
Mas eu queria fazer a defesa da escrita de si, da autobiografia, da memória como invenção também. É um estilo que me encanta, o qual pratico nos meus textos por aqui. E também da literatura com a qual nos identificamos. Eu leio Elena Ferrante pra me emocionar, me rasgar, chorar, morrer de amor e ódio pelos personagens. Mas também para conhecer melhor a cultura e a política italiana, me interessar pelos mitos, me encantar com o mistério de sua escrita, popular e profunda. É para ler sobre maternidade e o tempo, as relações tóxicas (o episódio de ontem da quarta temporada da série me derrubou, mesmo eu sabendo detalhes da cena, que já li e reli três vezes), sobre os preconceitos de classe e a oportunidade de crescer na vida através da educação e dos livros, sobre coisas que só nós mulheres sabemos e que são também mistério, assim como é Nápoles.
É para ler Ferrante no original que, há dois anos, comecei a estudar italiano. Demorei anos para realizar esse desejo, mas ele está aqui, pulsante, como nos tempos em que eu frequentava a xerox da universidade pública. Édouard Louis, eu também sou uma imitadora.
Acho que vc escreve tão bem quanto sua professora. E o livro do Sarr é belíssimo. Gostei muito!
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