Eu não desisto não!
O começo, o meio e o começo: a volta à Universidade Federal Fluminense, com uma prova que evocou o meu passado de estudante de jornalismo e de cinema da mesma UFF. Agora como mestranda em Literatura
Cartaz do filme, Rogério Duarte
No meu quarto em Niterói, de onde escrevo agora, só tem uma peça de decoração dos meus tempos de solteira e estudante: o quadro com o cartaz do filme Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha, cineasta que marcou profundamente a minha formação. Foi sobre a sua carreira como jornalista na imprensa baiana (Glauber foi chefe de reportagem de polícia, minha gente) e crítico de cinema (a mãe dele me mostrou o primeiro texto dele num jornal, sobre uma peça de teatro, que ele escreveu aos 12 anos!), que ele desenvolveu no saudoso Suplemento Dominical do Jornal do Brasil o meu trabalho de conclusão de curso na graduação da faculdade de Jornalismo, na UFF.
Também nessa época eu fiz algumas disciplinas de Cinema, estudei o Cinema Novo, vi e li tudo o que eu pude até entrar na redação do Globo e me dedicar à carreira de jornalista política. Porque Glauber e Graciliano Ramos, outra inspiração da época da faculdade, me formaram também no interesse pela política brasileira.
Eu sempre fui muito impressionada com o fato de Glauber, aos 24 anos, já ter realizado uma obra-prima como Deus e o diabo. Um cara autodidata, que abandonou a faculdade de Direito para realizar o sonho do cinema e que chegou ao auge da carreira tão jovem. Eu tinha 20 e poucos quando estava me formando, depois de ter abandonado a faculdade de Economia, e me sentia sempre em atraso com os meus sonhos. O que ia realizar e quando?
Cenário da peça “Eu não me entrego não”, com o ator Othon Bastos
Há um mês, mais ou menos, fui assistir à belíssima peça “Eu não me entrego não”, do Othon Bastos, ator de Deus e o diabo que ilustra o pôster do filme como Corisco. A imagem está no centro do palco de “Não me entrego não”, verso da música que integra a linda trilha sonora do filme. A peça é uma viagem no tempo de sua carreira, e também funcionou assim pra mim. Assistir à cena dele com Yoná Magalhães no filme, encenada por ele hoje, com 91 anos, ao som de Villa-Lobos, foi uma das coisas mais bonitas que vi nos últimos tempos. E também a cena que ele reproduz a viagem que fez com Glauber até o sertão para as filmagens é emocionante demais. Eu também viajei aos meus tempos de faculdade, de descoberta da arte como possibilidade de entender o mundo, da admiração por pessoas que faziam de seu ofício uma espécie de militância para um país melhor.
A determinada altura, Othon Bastos conta que é a primeira vez, depois dos 90, que ele faz um monólogo. Meus olhos encheram d’água.
Há quase dois meses, estive na UFF para fazer a prova de Mestrado em Literatura e a questão sorteada naquela tarde, na subárea escolhida, foi sobre Macunaíma, o livro de Mário de Andrade que inspirou outro cineasta do Cinema Novo, Joaquim Pedro de Andrade, também morto precocemente, como Glauber, a fazer a obra-prima que tem Grande Othelo e Paulo José como protagonistas.
Cena da feijoada antropofágica de Macunaíma no Parque Lage
O tema estava longe do meu objeto de estudos e pesquisas atuais, mas foi, de certa forma, um retorno a meus tempos de estudante da própria UFF. A Cláudia que amava o cinema, que fez um trabalho sobre Modernismo baseado na adaptação de Macunaíma para o cinema, que sempre se deslumbrou com o Parque Lage como cenário do filme (e também do clássico Terra em transe, de Glauber). Foi a Cláudia que entrou na faculdade em 1998, que pegou a caneta e escreveu a prova. Em diálogo com a Cláudia de hoje, que gosta de ir ao teatro e assistiu, antes da pandemia, a uma adaptação de Macunaíma feita pela Bia Lessa, que se interessa pelo feminismo e pelas adaptações de clássicos incorporados aos novos tempos e novas visadas de mundo, que é apaixonada pela linguagem dos podcasts e que trouxe o Projeto Querino (obrigada, Tiago Rogero e equipe) para a questão da prova, dando uma volta pela sua formação. Também foi a Cláudia que se apaixonou pela releitura de Roland Barthes que fez a prova com a caneta e mil ideias na mão e acabou recebendo a nota mais alta da seleção.
Essa mulher, que ainda não domina o texto acadêmico e vai completar 50 anos em março do ano que vem, três dias depois do aniversário de Glauber (também pisciano, nascido em 14 de março de 1939), vai realizar o sonho de estudar literatura na universidade. De voltar a pesquisar, como fez nas bibliotecas Nacional, da UFF e da Cinemateca do MAM, no Tempo Glauber (onde conquistou dona Lúcia, a mãe do cineasta, que lhe confiou textos originais para que os xerocasse em alguma gráfica da Voluntários da Pátria). Que quer voltar a se emocionar ao fazer achados como esse: o livro de Glauber que nem a mãe tinha e que encontrou na biblioteca da faculdade, copiou e entregou a ela.
Pesquisar, escrever, realizar sonhos é gostoso demais. Não importa a idade. Se eu não escolhi Letras no vestibular de 1990, ainda é tempo de dar a volta no tempo porque, como lembrou Luiz Antonio Simas, citando Nêgo Bispo, a vida é feita de começo, meio e começo.
Parabéns!
Que texto lindo! Que sua estadia nessas outras praias das humanidades seja repleta de descobertas. 🧡