O cheiro da escola tem giz, suor, borracha e cola
Memórias do meu tempo de infância misturadas à emoção de ver o meu filho crescer e entrar no Ensino Médio; dicas de leitura e um filme sobre as possibilidades de narrar
Trabalhinho escolar do Francisco: “Perto do meu prédio tem uma feira”.
Fecho os olhos e sinto o cheiro da minha lancheira escolar. Não estou falando da comida, embora o gosto do Mirabel também esteja gravado na memória, mas é algo mais específico. Talvez o material de que é feita, a toalhinha que eu levava para forrar o banco para comer. Também me lembro do cheiro da minha escola, que revisitei algumas vezes, quando já estava no segundo grau (atual Ensino Médio pros jovens), para relembrar os espaços, rever as pessoas (seu Alencar da cantina, por exemplo), me encontrar com a Cláudia que menstruou aos dez anos e morria de vergonha de ir ao banheiro com a necessaire, a menina faladeira que tirava nota boa, mas tirava as professoras do sério, a que matou aula e foi descoberta, depois foi andando até em casa levando beliscões da mãe (que nunca gostou de ter trabalho com a escola, frequentar as reuniões nem providenciar as roupinhas das apresentações de dança…).
Escola tem cheiro. Vocês conseguem reconhecer? E não é o mesmo cheiro da creche não. Eu me lembro bem quando levei o Francisco pela primeira vez na “escola maior”. É uma mistura de giz, madeira das carteiras e mesas, lápis de cor, borracha… Ele chegava em casa da escola com esses odores misturados ao do suor, da mochila, dos livros. Eu abraçava e cheirava para sentir o gostinho da alegria de ser estudante. Que fase boa. Ele tinha real noção disso, tanto que uma vez disse que gostaria de voltar ao primeiro ano, mas com a cabeça que ele tinha então, no quinto. Tudo que a gente sempre quis, né? Corpinho de 20, cérebro de 40.
Outro dia, a roteirista e escritora Renata Corrêa lembrou de um hábito bem doido que a gente tinha na infância suburbana: o de espalhar cola na mão, deixar secar e depois tirar, acariciando a pele lisinha que ficava. É claro que imediatamente eu viajei no cheiro. Era a mesma época que a gente brincava de elástico no recreio e comia bolete na saída. Será que meu filho também está guardando os cheiros da infância dele?
Quando eu digo participar, é isso. Dançar junto na festa junina…
A pandemia nos tirou um tempão de convívio na escola, e esse pra mim foi um dos traumas que restou. Porque foi justamente no ano que ele ia começar a ir e voltar sozinho, mas que a gente ainda ia buscar nos jogos, participar das festinhas, dar umas incertas na porta. Não é para vigiar não. É que gostamos de vê-lo com os amigos, de participar desses momentos que, daqui dos 40 e poucos anos, sabemos que terão sido os melhores. Mas, o tempo passa, né? Teve um ano, pós-pandemia, que levantamos cedo, tomamos café e nos arrumamos para sair. Mas não demos um passo: “Onde vocês pensam que vão? Eu vou pra escola sozinho, nem pensar em vocês me levarem…” Pá! Sentimos, hein…
Esse ano, Francisco está indo para o Ensino Médio. Têm poucos dias que nos demos conta de que agora não tem mais lista de material escolar. O pai chegou a procurar no site da escola, vejam bem! Pai e mãe muitas vezes se negam a ver o óbvio. O garoto cresceu! Acabou o tempo de encapar caderno (quem se lembra do cheiro do plástico?). Não precisa mais comprar uniforme nem mochila nova. Ele fez 15 anos em dezembro e, neste carnaval, foi a um bloco sozinho. Quer dizer, sem a gente. Ué, mas nem gostava de carnaval… esse é outro assunto, deixa pra lá (rs de nervoso).
O muro da creche com o nome dos estudantes. Quem aguenta?
Outro dia, do nada deitou ao meu lado na cama e me contou que tinha visitado a creche antiga. Eu vivia pedindo para ele mudar o caminho e passar lá na frente para cumprimentar seu Laurindo. Na verdade, eu queria ter ido com ele mostrar como o menino falante (puxou a mãe?) tinha crescido e agora era capaz de ninguém da creche reconhecer. Mas seu Laurindo reconheceu (de vez em quando eu passo lá e mostro fotos pra ele, abafa) e o convidou para entrar. Pois, ele me contou como foi revisitar o pátio, o jardim da tartaruga (que continua lá), a secretaria e, ainda, espiar uma das salas pela janela. Achou tudo muito pequeno, como ele cabia lá, e ficamos lembrando do choro do Vicente, do meu medo dele cair dos brinquedos e se machucar, do dia que voltou pra casa com a bochecha inchada por uma mordida, da Maria, das amiguinhas e amiguinhos. Quanta saudade!
Nesta segunda, dia 5 de fevereiro de 2024, foi o primeiro dia de aula no tal Ensino Médio. Quando ele voltou pra casa, meio mal-humorado com a proibição de usarem o celular na escola, a obrigação de voltar a usar tênis todo dia (cariocas preferem os chinelos) e com sono, eu o abracei. O moço tá com um cheiro diferente.
Dicas de leitura
O coração do dano, da argentina María Negroni, com tradução de Paloma Vidal, é um livro que a própria autora não gostaria de ver definido, pois ela mesma ia dizer que sua literatura não se encaixa em nenhum gênero. Afinal, diz ela, recorrendo a uma fala de Hélène Cixous: “o livro não tem pé nem cabeça”. A autora, no entanto, escreve com o corpo, como pedia a filósofa franco-argelina, e desenha uma espécie de mosaico, feito de cacos (como apontou a Kate Ruas, integrante do clube de leitura da Janela Livraria), em que descreve a história do seu relacionamento com a mãe, e da mãe com o pai, e faz uma espécie de autobiografia de sua vida de leitora e de escritora
Encontro sobre O coração do dano, no clube de leitura da Janela Livraria
Cabe a nós, leitoras, irmos juntando os cacos, compostos de trechos de poemas, histórias sobre a sua mãe (algumas deliciosas, como a do dia em que a autora, doente, não pôde ir à sua festa de formatura de escola, ocasião em que a mãe recebeu o primeiro livro da menina das mãos de ninguém menos que Jorge Luis Borges), e trechos de autoras e autores que ela leu e a quem recorreu para formar uma espécie de testamento de sua escrita. O livro parece surgir da necessidade de expressar o forte descompasso que tinha com sua mãe, de quem esperava mais carinho, atenção, cumplicidade. Ou de uma investigação mesmo sobre a complexidade desse relacionamento, feito de expectativas frustradas. Mas não é só isso, ou não é bem isso, porque ela escreve que “A escrita não consola, não compensa nada, apenas custa cada vez. Daria tudo pelo dom das lágrimas.”
É um livro também sobre memória e a capacidade de narrar. Afinal, que história é a verdadeira e qual a que fica? Quem sabe contar melhor? María Negroni começa o livro lamentando que, em sua casa, não havia livros. Mas diz que sua mãe nega essa afirmativa. Lá pelas tantas, ela se lembra que lia com a mãe, de origem italiana, livros de Elsa Morante e Leopardi. Afinal, qual é a queixa? Também num trecho ela diz que sua escrita é materna, carrega o sobrenome da mãe, para em seguida dizer que fez um livro que a magoou, porque expunha a sua carne. O que ela quis dizer? Que a formação que a mãe lhe deu ela devolveu em linguagem? Palavras que ferem?
“Essa queda na noite, indisciplinada e turva, é a literatura.” (María Negroni)
É um livro para apaixonados por leituras, com citações de escritores (tem de Clarice Lispector a Guimarães Rosa, passando por Ana Cristina Cesar, Proust e Virginia Woolf), sobre a relação visceral entre mãe e filha e uma certa busca pela literatura que expõe quem escreve ao erro.
O livro saiu pelo novo selo da Editora WMF Martins Fontes, o Poente.
No grupo de whatsapp do clube de leitura, a Juliana Sarué Szechtman enviou uma matéria sobre o livro essa coisa viva, da Maria Esther Maciel, dizendo que o tema era parecido com o que estávamos lendo naquele mês. A Ju pediu que eu comentasse, no encontro, sobre o estilo do livro da María Negroni porque era bem diferente do que tínhamos lido até ali. Bom, fiquei curiosa e fui ler a Maria Esther, autora que já admiro muito e que lançou agora o seu primeiro romance.
Fiquei encantada, arrebatada e fui nocauteada pela obra. Mais ou menos nessa ordem. Comecei a ler em Niterói, no meu quarto de solteira, com mamãe no quarto ao lado. Bem, não sei vocês, mas o relacionamento com as mães não são coisas assim, eu diria, triviais. Muitos sentimentos envolvidos, muitas histórias, muitos silêncios. Só que minha mãe resolveu falar. Talvez seja a idade, mas ela rememora tudo e conta tudo do seu jeito. Eu que lute! O texto aqui não é sobre ela, é sobre a mãe do livro da Maria Esther. Então, vamos lá.
Uma mulher mineira, de uma família tradicional, que, pelo relato da filha nessa carta-livro, a maltratava de diversas maneiras. Agressões verbais, tapas, castigos, predileção indisfarçada pelo irmão mais novo, desprezo, agressão psicológica. Tudo isso temperado com o sabor da infância mineira, os doces da avó materna, o bom relacionamento com o pai, os estudos, a descoberta da sexualidade, os quintais de casas e fazendas e o amor pela botânica, a natureza e os bichos.
Uma leitura gostosa, mas cheia de sinuosidades, nos momentos em que a mãe apronta mais uma, e mais uma, e mais uma. Até o dito nocaute final. Quem folhear o livro antes de começar a leitura, não se deve deixar enganar pelos títulos singelos dos capítulos. O livro é sobre uma relação abusiva. Uma narrativa corajosa, pois põe em xeque as noções sobre os limites do amor e ódio envolvido na relação entre mães e filhas.
A foto acima é do dia em que gravei um vídeo curto, para um programa de literatura, recomendando o livro. Ansiosa pelo lançamento com a presença da autora no Rio. Vai ser em abril.
Sobre a escrita de si e a “verdade”
“É possível escrever o que se vive?”, se pergunta María Negroni em O coração do dano. Pois a frase ficou na minha cabeça quando saí da sessão de Anatomia de uma queda, filme de Justine Triet que ganhou a Palma de Ouro, concorre a cinco Oscar e é o queridinho atual da minha bolha literária. E não é pra menos.
O filme é sobre a vida de um casal de escritores, ela de sucesso, ele, um fracasso, que se isola nas montanhas dos Alpes para refazer a vida financeira e sobreviver à crise que se instalou depois de um acidente que causou uma deficiência visual no filho. O homem morre em circunstâncias que a ciência forense não é capaz de esclarecer e tudo o que a Justiça tem são as pegadas, os depoimentos da família, das poucas pessoas próximas e a tentativa de reconstruir a cena do assassinato - ou do suposto suicídio.
Mas tudo é volátil e frágil como a neve que se desfaz depois de alguns minutos de exposição à luz do sol fraco, que é a suposta explicação para a inexistência de sangue no lugar onde o homem teria batido a cabeça antes de cair estirado na frente de casa. A neve descongelou, refaz-se novamente a narrativa da queda.
O filme é feito da tensão entre a descoberta do filho de que mãe e pai brigavam por sua causa, numa disputa não só por quem deveria ser responsável por sua educação e gastos com a casa, mas também pelo sucesso profissional na escrita. Numa das poucas cenas mais leves da história, o advogado de defesa da mãe defende que o que está escrito nos livros dela, declarada e sabidamente feitos das histórias de sua vida, não podiam valer como prova. Afinal, se assim fosse, Stephen King seria um serial killer.
E aí a questão dos limites entre verdade e ficção se borram na tentativa de compreensão da história. Afinal, se ela escreveu na ficçãom supostamente espelhada na vida real que queria matar o marido, a autora estava falando de um projeto pessoal, inventando uma possibilidade para narrar a insatisfação no casamento, recorrendo à imaginação para tornar o livro mais interessante?
Depois de ver o filme, lembrei de Annie Ernaux, claro, a autora que escreve sobre a sua vida de um jeito tão fascinante que eu leio tudo dela como se fosse ficção. E, afinal, não deixa de ser. Porque quem vai confiar piamente na memória de uma contadora de histórias? E pra que? Eu fico com o texto bem escrito, com a versão melhor contada. E acredito em Ursula Le Guin, quando diz que as escritoras são umas grandes mentirosas. Não estou aqui para julgar, mas para ler um bom livro.