O prazer da releitura
As bulas de remédio e os primeiros escritos, o vórtice da biblioteca infinita e o reencontro com obras que mostraram o valor de ler de novo aquilo que nos marca. E ainda os primeiros eventos de abril
Fui uma menina que gostava de letras, mas tinha poucas à disposição. Na estante lá de casa, posso contar: havia uma Bíblia, depois chegou uma edição ilustrada para crianças, um livro de contos da Disney com capa dura verde e um dicionário infantil da Vila Sésamo. Papai e mamãe me deram também aquela coleção de disquinhos coloridos, numa embalagem imitando uma casa. Cada um deles vinha dentro de um livrinho, com a história escrita, pras crianças que já sabiam ler.
Havia também um único exemplar de Sozinha no mundo, da coleção Vagalume, que eu lia e relia muitas vezes. Também gostava de ler as revistas que mamãe assinava e tudo que era embalagem, de desodorante a sabão em pó. Sabia os textos de cor de tanto reler. As bulas de remédio eram leitura diária (será que fiquei hipocondríaca por isso? Nunca tinha aventado essa possibilidade…). Aliás, meu primeiro primeiro processo de escrita eram as fichas de consultório de minhas bonecas. Uma para cada, com nome, lista de sintomas e remédios. (hipocondríaca sim!) Eu gostava de ficar sozinha, no meu quarto, brincando. O silêncio era tanto que mamãe, de vez em quando, ia verificar se estava tudo bem.
Quem se lembra da coleção Disquinho? Chega a cair uma lagriminha por não ter guardado…
Fui uma criança introspectiva e uma adolescente muito tímida, como podem ver.
Quando entrei na faculdade e descobri, no caminho até a UFF, que eu podia comprar livros usados até na rua, nos sebos ou pegar emprestado na biblioteca da universidade, foi o paraíso na terra. Eu me perdia entre as estantes, com listas de livros que cada vez aumentavam mais. Parecia tragada por um vórtice (alô, Tatianne Dantas, ei Ferrante), do qual, felizmente, nunca consegui sair.
“A Biblioteca é ilimitada e periódica. Se um eterno viajante a atravessasse em qualquer direção, comprovaria ao fim dos séculos que os mesmos volumes se repetem na mesma desordem (que, reiterada, seria uma ordem: a Ordem). Minha solidão alegra-se com essa elegante esperança.” (Borges)
Nessa época, com 19 anos, eu arranjei meu primeiro emprego, pois fiz um concurso para assistente administrativa na prefeitura de São Gonçalo, onde ainda morava. O pouco que ganhava passei a gastar em livros e discos, nos sebos que havia no Centro de Niterói.
Eu adorava aquela coleção de livros capa dura da Abril e foi dela que li os grandes clássicos que me apaixonaram nessa primeira fase: Dom Quixote, Crime e castigo, O vermelho e o negro, Os maias, Madame Bovary. (depois eu conto que a maioria eu lia durante minhas convalescenças pulmonares). Também lia grandes livros em edições pobrinhas, um tanto rasgadas, como a do Morro dos ventos uivantes, com suas folhas amarelecidas, gastas, mas com um texto tão maravilhoso que todo o resto era secundário.
Na biblioteca, eu gostava de pegar livros de história, de não-ficção, principalmente tudo o que eu achava ligado à ditadura militar de 1964 (que faz 60 anos no fim desta semana, vá de retro!). E as listas só aumentavam. Passei a ganhar livros usados de presente, depois alguns novos. Mudei de faculdade (de economia para jornalismo), entrei no primeiro estágio, tinha bolsa de pesquisa, pagava poucas contas e pude continuar a comprar parcos livrinhos para aumentar a coleção.
Acho que foi nessa época que desenvolvi um certo horror pelas releituras. Como eu tinha o universo ainda para conhecer, não podia parar e voltar, mesmo nas obras que eu amava demais. Outra coisa: será que eu sentiria de novo aquele frescor do primeiro contato? Não, não havia tempo. Eu tinha começado tarde demais e sempre me admirava, com uma certa inveja, de quem dizia ter começado aos 11, 12 anos a ler os grandes clássicos, alcançáveis em bibliotecas de casa. Eu não. Tinha que alcançar a comunidade leitora desde sempre.
(Tem mais: eu me desfiz de muitos desses livros para comprar novas edições. Mas estão intactas na minha estante)
Pois bem. Aí vieram os clubes de leitura e as novas amizades leitoras. No início, eu ficava um pouco pasma com a facilidade com que elas falavam em reler tal e tal livro. Minha FOMO (Fear of missing out) continuava a todo vapor. Devo confessar que até sentia uma certa vergonha de admitir que não tinha lido nada, por exemplo, de Jane Austen. Como assim chegar aos 40 sem ter se apaixonado por Mr. Darcy na adolescência, minha gente? Mas, lembrem que lá em casa, etc. e tal. Depois, as leitoras é que ficaram com inveja de mim, da sensação de leitura pela primeira vez de uma grande obra! Pá! Minha vingança!
Trabalhando com livros em editoras e agora mediando clubes de leitura, convivendo com pessoas que me ensinaram o valor de retornar a um texto, eu descobri o imenso prazer da releitura. Ele chegou logo com quem, Elena Ferrante. Quem já leu a Tetralogia e se apaixonou (quem não gostou, pode ficar de mal comigo, hehehehe), deve ter percebido que as mais de mil páginas da saga de Lenu e de Lila envolvem tantas camadas de conflitos entre as personagens, tantas informações sobre a história, marcos importantes da política, de movimentos sociais, da literatura que é possível ter o mesmo espanto de quando fomos apresentadas ao bairro de Nápoles pela primeira vez. Tantas e quantas vezes tivermos que retornar aos seus labirintos.
Eu reli toda a obra de Ferrante pela primeira vez por prazer, a segunda por profissão. É que no ano passado tive a oportunidade de mediar os livros no Janela para o mundo, da Janela, no clube de leituras italianas, do Instituto Italiano de Cultura, e também na própria Janela, quando fizemos a leitura compartilhada da Tetralogia. Frantumaglia eu já perdi as contas de quantas vezes revisitei, pois a obra é quase uma Bíblia pra mim (e pras Ferranters pesquisadoras da autora italiana, não sou só eu a doida aqui).
Estive pensando em tudo isso para falar do próximo clube de leitura que vou mediar, de novo na Janela Livraria: “Quem tem medo de ler Virginia Woolf”, que começa no próximo sábado com Um quarto só eu, o ensaio referencial do feminismo, que eu também perdi as contas de quantas vezes reli. Até porque esse livro tem uma história muito especial: ele inaugurou o Clube F., da Bazar do Tempo, e foi para trabalhar na criação do Clube e na divulgação e mediação do primeiro evento para assinantes que a editora Ana Cecilia Martins me convidou. Ou seja, quem me trouxe de volta ao mercado editorial, depois de três anos trabalhando em museu, foi ninguém menos que Virginia Woolf.
Muita gente me pedia para fazer esses encontros e, em seguida, vamos ler Mrs. Dalloway (lido pela terceira vez), Ao farol, Orlando, Cartas de amor (Virginia e Vita) e Flush. Nos encontros, vou falar também dos primeiros romances, para tentar mostrar o caminho trilhado por Virginia como romancista, até chegar aos seus clássicos. Depois dessa trilha, acho que a turma estará pronta para investirmos nas obras consideradas mais “difíceis”. Pra mim, vai ser um prazer enorme reler alguns deles, pois Virginia Woolf também é autora de cabeceira, para nos acompanhar pela vida.
Ainda sobre ela
Virginia tem muitos marcos na minha vida. Trabalhando em outras editoras, já indiquei livros, implorei pela publicação a algumas editoras amigas (aquele famoso “nunca te pedi nada, traz esse livro pro Brasil”), mas foi um volume da escritora inglesa que me fez estrear no processo de aquisição de direitos de um livro.
Tudo começou quando vi a tradutora Emanuela Siqueira postando em seus stories o livro de cartas de Virginia com Victoria Ocampo, a feminista argentina de quem conhecemos pouco aqui no Brasil. Fiz o print, mostrei na reunião seguinte da Bazar e a Ana Cecilia me deu o aval para ir atrás do livro. A sorte é que a casa editorial argentina que editou o volume de cartas é independente, publica muitos ensaios contemporâneos e, em seu site, informava o desejo de publicar mais obras feministas. A cara da Bazar, né? No entanto, eles demoraram a responder, outras editoras fizeram ofertas e nós insistimos na afinidade com o catálogo e o interesse primeiro na publicação. Deu certo!
O livro está impresso. Com tradução da Manu (tinha que ser), que trouxe mais duas junto (Nylcéa Pedra e Rosália Pirolli), capa da Cristina Gu, texto da Manuela Barral, pesquisadora argentina que fez a organização das cartas em Buenos Aires, coordenação editorial de Joice Nunes, que se juntou ao time da Bazar, pra nossa sorte, ilustrações da Greta Coutinho e a batuta editorial da Ciça. Ficou lindo demais!
Fizemos alguns lançamentos da obra (Brasília, São Paulo e Fortaleza) e estamos marcando mais. Estarei num deles aqui no Rio. Mal posso esperar para divulgar.
Ah, é claro que, para o encontro, vou fazer a segunda releitura da obra.
Agenda
Na terça, dia 2 de abril, vou fazer minha segunda mediação do ano, desta vez com um escritor brasileiro, Celso Costa, e seu livro adorável: A arte de driblar destinos. Na semana que vem, escrevo mais sobre o livro e um segundo que estou lendo na esteira desse, mas já deixo o convite: é uma história que se passa no interior do Paraná, com um retrato de um Brasil pouco explorado em nossa literatura, e personagens que passam a habitar nosso imaginário, assim como já são parte da paisagem afetiva e memorialística do autor. O estilo autobiográfico eu adoro, como quem me segue e me conhece já deve ter percebido.
Também na semana que vem, estreia o clube de poesia do Círculo de Poemas, que vou ter a alegria de dividir com o poeta e livreiro Leonardo Marona. Na news da quinta que vem, posso dar mais detalhes, mas o principal já fica por aqui: vai ter vinho! E releitura, ora pois, do livro Ninguém quis ver, da Bruna Mitrano.
Tb amava os disquinhos coloridos rsrs Comecei muito tarde também então nesta vida já me conformei que não lerei o q quero rsrs É curtir o processo !! Estarei lá no Clube Virginia Woolf