Os abismos de ser e estar
Apontamentos sobre a morte (amizades perdidas) e a vida (novos encontros literários); Clarissa e Septimus; a escrita e o silêncio; o tombo que interrompe o texto; Ocampo e Woolf; Tamara e Tatiana.
“Não era velha ainda. Acabava de entrar no seu quinquagésimo segundo ano. Meses e meses dele ainda estavam intocados. Junho, julho, agosto! Cada um deles continuava praticamente inteiro e, como se para apanhar a gota que caía, Clarissa (...) mergulhou no âmago mesmo daquele instante, transfixando-o, ali - o instante desta manhã de junho…”
Clarissa Dalloway ainda estava por completar 52 anos quando saiu para comprar flores, numa manhã de junho de 1923, em Londres. Eu nunca tinha pensado na idade da protagonista do livro de Virginia Woolf. Mas, na terceira releitura, a informação caiu como uma luva (objeto que ela sai para comprar no conto que deu origem ao romance) na percepção sobre o impacto da passagem do tempo na vida de Mrs. Dalloway.
E na minha.
“Ela simplesmente amava a vida.”
Muita gente deve conhecer a história: Clarissa Dalloway vai dar uma festa e, no meio do caminho até a Bond Street, onde se situa a loja em que vai escolher entre delfínios, ervilhas-de-cheiro, molhos de lilás e cravos, ela reflete sobre o que resta de nós depois da morte. As memórias, os rastros pelas ruas, na natureza? Ainda na Picadilly, Clarissa para em frente à Hatchard’s (a mais antiga livraria de Londres) e pensa nos horrores da grande guerra…
Fachada da Hatchard’s, fundada em 1797
Neste longo dia de junho que dura 197 páginas (na minha edição da Autêntica, com tradução de Tomaz Tadeu), a nossa protagonista vai reencontrar dois amores do passado: a amiga Sally Seton, a quem desejou com ardor quando eram jovens, e Peter Walsh, o ex-namorado trocado por Mr. Richard. Vai se escandalizar com a relação entre a filha, Elizabeth, e a sua tutora, que despreza Mrs. Dalloway, e vai receber o primeiro-ministro, médicos, artistas e a grande sociedade de Londres em sua residência para a famosa festa.
“De qualquer maneira, o fato de que um dia se segue ao outro; quarta, quinta, sexta, sábado; de que vamos despertar pela manhã; ver o céu; andar pelo parque; encontrar Hugh Whitbread; e, depois, de repente, a chegada de Peter; depois, essas rosas; isso bastava. Frente a isso, como a morte era inacreditável! - o fato de que isso deva acabar; e ninguém no mundo inteiro ficaria sabendo como ela tinha amado tudo isso; como, cada instante…”
Septimus Warren Smith, o ex-soldado que volta da guerra ouvindo pássaros cantarem em grego, recebendo a visita dos amigos mortos e casado com uma italiana que tenta reanimá-lo para a vida, já se jogou da janela, negando-se a receber mais uma visita do médico que desacredita seu estado de saúde mental, quando Clarissa, quase no fim da festa, ouve falar dele. O “duplo” de Clarissa, que adorava Shakespeare e era apaixonado por uma moça antes de ser ceifado pela “natureza humana”, surge como contraponto à vida de Mrs. Dalloway na história.
“A morte era um ato de rebeldia. A morte era uma tentativa de se comunicar. (…) Havia um abraço na morte.”
A morte é inevitável, inexplicável e imprevisível. Nossas reações a ela também o são. Na meia idade, então, atingimos uma espécie de ponto do abismo. Ela já nos alcançou em algum momento da vida, seja no passado, quando relembramos nossas perdas, seja no presente, quando esbarramos com outras, seja no futuro, quando avistamos a sua característica mais temível, a de ser inescapável.
Se os livros nos tocam de diferentes formas nos variados momentos da vida, esse talvez tenha sido o que me deu a mais potente noção disso. Não é apenas o fato de ter completado 49 anos há pouco mais de um mês (estou próxima de Clarissa nesse sentido), mas também estar sob efeito de certos acontecimentos recentes que chegam desprevenidamente e nos acertam em cheio.
Tenho pensado nos lutos que nos atravessam, e que são muito sentidos, mas pouco falados. Perder uma amiga em vida traz um luto extremamente dolorido. Escrevo isso e me lembro das passagens na Tetralogia Napolitana nas quais Lenu sofre com a ausência de Lila (sem contar a maior ausência de todas, que se torna presença em forma de narrativa, o desaparecimento total da amiga). As amizades, que também são paixões, acabam como os amores. Se paramos de acender os fósforos, elas apagam. Conflitos, sérios ou bobos, as derrubam. O fim da afinidade também.
Em novembro do ano passado, reencontrei uma amizade perdida. Meu corpo me traiu. Fui até ela, botei as mãos em seu rosto, vi seus olhos brilharem como antigamente, como os via há mais de vinte anos, quando os vi pela primeira vez, como antes, sem se deixar adivinhar se estavam acesos de tristeza ou por euforia. Abracei, disse que sonhava, sentia saudade. Ela deve ter sentido meu coração disparado quando nos encostamos. Mas foi só isso. No dia seguinte, nos esbarramos e nada mais havia.
(…)
Texto interrompido por um tombo. Quando o anti-inflamatório fizer efeito, talvez ele continue daqui.
Sobre amizades literárias (e eternizadas em cartas e livros)
Têm dois lugares em que minha imaginação voa: quando estou dirigindo na Ponte Rio-Niterói ou estou caminhando pelas ruas do bairro (Laranjeiras não é Londres, mas rende ótimas crônicas também, Virginia). Na quinta passada, a caminho da casa da minha mãe e depois de mediar um evento na Janela Livraria, me vi num momento de ser: como é bom ser (desculpe repetir o verbo) editora. Trabalhar com livros. Conhecer pessoas por meio deles. Ainda que a conta bancária esteja em farrapos.
A pesquisadora argentina Manuela Barral, especialista na vida e obra de Victoria Ocampo e organizadora das cartas da intelectual argentina com Virginia Woolf, veio ao Rio para apresentar o livro na FGV e participar do lançamento na livraria do Jardim Botânico. Na mala, ela nos trouxe dois volumes da Autobiografia de Ocampo, a generosidade em dividir a história de suas pesquisas e a disposição de celebrar os encontros de mulheres em torno da literatura.
Eu, Manuela e Martha com a mesa plena
Na mesa com a gente, estava Martha Ribas, editora, livreira e amiga que, com sua paixão pelos livros, contagiou a todos ao falar sobre Sylvia Beach, a dona da Shakespeare & Co, que apresentou Ocampo a Um quarto só seu (edição da Bazar do Tempo, com tradução de Julia Romeu), ao ceder espaço em sua agenda atribulada para conversar com a gente e com o público que, em outra noite mágica, ocupou as calçadas da livraria mais charmosa do Rio.
Victoria se inspirou na obra de Virginia para voltar a escrever e publicar. Em suas cartas, Virginia contava de seu cotidiano, de sua relação com sua escrita, mas tinha a preocupação de sempre perguntar à argentina sobre a sua produção, num ato que hoje celebramos ao pesquisar, ler e publicá-las, sabendo que essa ação vai ser reproduzida em tantas esferas da vida de outras mulheres que trabalham com livros.
Heleine Fernandes, Sara Ramos e Jade Medeiros
Ao voltar para o Rio, no sábado, para um encontro da Bazar do Tempo na livraria da Travessa de Botafogo, eu não fazia ideia do quanto o lançamento de Você lembrará seus nomes (organização de Lubi Prates) seria também um espaço privilegiado para ouvir mulheres que escrevem, editam, traduzem, dão aulas, incentivam umas às outras nessa corrente que é infinita. Heleine Fernandes, a mediadora, Sara Ramos, tradutora, e Jade Medeiros, também tradutora, compartilharam seus processos de trabalho de forma tão aberta, afetiva e generosa (desculpem os clichês, sou pisciana) que me fizeram sair da livraria com as forças renovadas (eu que tenho trabalhado tanto, escrevendo, pesquisando, estudando, editando, divulgando, lavando, cozinhando e passando, etc ando).
A newsletter de hoje (que quase não sai por causa do tombo) é sobre a morte (das amizades perdidas) e a vida (dos novos encontros que a literatura me trouxe). Esse é o fio. Mas ainda tem mais:
Nesta sexta, na Travessa de Botafogo, tem o clube do Círculo de Poemas na Travessa de Botafogo.
Vamos ler e conversar sobre Garotas em tempos suspensos, de Tamara Kamenszain, e Onde estão as bombas, de Tatiana Nascimento
No sábado, o segundo encontro do clube “Quem tem medo de ler Virginia Woolf?”, que será sobre… Mrs. Dalloway.
Até a próxima quinta.