Por que Elena Ferrante incomoda tanto?
Um texto misógino e ofensivo contra a autora da Tetralogia Napolitana e as escritoras mulheres na Itália à luz da origem judaica de Anita Raja; mais Ferrante hoje no Instituto Italiano no Rio
“Cassandra”, 1898, Evelyn de Morgan
Assim como os livros vão “descendo” das estantes na hora certa (daí a minha preocupação zero de responder à pergunta se já li toda a minha biblioteca e se terei tempo de ler enquanto for viva), as ideias também vão assentando em nossa cabeça conforme as deixamos descansar e, do nada, as sinapses acontecem e elas brotam.
Outro dia, li um texto misógino e francamente ofensivo contra Elena Ferrante e todas as escritoras que publicam e vendem livros na Itália. Pretendia escrever sobre ele na newsletter da semana passada e publicar na sexta. Mas decidi esperar.
Hoje (escrevo no domingo à noite) eu tinha planejado finalmente traduzi-lo (está em italiano) durante a tarde, mas, em vez disso, dormi, lavei roupa, estendi a roupa, desfiz mala, comprei livros, reli o último capítulo do livro da Isabela Discacciati e, por isso, comprei um DVD de um filme do Vittorio de Sica, revisitei minhas estantes em busca de uma curadoria que estou desenvolvendo e, por fim, lembrei de um papo com amigas na noite de sábado, na Janela Livraria, que me levou a uma busca por um livro ainda não publicado no Brasil por Domenico Starnone. UFA.
De Starnone a Elena Ferrante foi um pulo, daí a um texto mais recente do jornalista Claudio Gatti, conhecido e criticado por ter exposto a suposta identidade da autora de A amiga genial, foram dois ou três cliques. Agora que já sei ler na língua da Elsa Morante, com ajuda do dicionário aqui e ali, resolvi acessar as suas reportagens originais sobre Anita Raja, a tradutora que trabalha na casa editorial de Ferrante e cujos ganhos, descobertos por Gatti, aumentam vertiginosamente após o sucesso da Tetralogia Napolitana, principalmente no exterior.
Eu sabia que Anita Raja tinha origem alemã, pois traduz do alemão para o italiano obras de Christa Wolf (autora presente na famosa lista de Ferrante), Kafka, Hesse e outros. Já tinha me perguntado sobre a sua biografia, mas só hoje topei com um texto recente de Gatti em que ele conta da origem judaica (não só napolitana) de Anita Raja (ou seja, Ferrante) e que tinha feito uma pesquisa extensa (jornalista investigativo que é) sobre a vida da mãe dela, Golda Frieda Petzenbaum.
Elena Ferrante, quer dizer, Anita Raja, é filha de uma mulher que fugiu do nazismo, sobreviveu ao Holocausto e ao fascismo italiano. Para Gatti, essa é a chave que abre um novo nicho de interpretações sobre a obra da autora - inclusive a inclinação para retratar a “dor da laceração”, um traço da literatura judaica.
Recomendo bastante a leitura do artigo dele sobre a mãe de Anita Raja, porque, de toda forma, apesar de incômodo para as Ferranters que não se interessam por desvelar a identidade de sua autora favorita, é um trabalho jornalístico de fôlego.
Mas, para fins desse meu texto, ele me permitiu ler com mais profundidade o tal artigo que saiu na imprensa italiana na semana passada. Em resumo, o autor não gostou de ver a obra de Elena Ferrante no topo da lista do New York Times, o que reputou a um momento do mercado literário em que somente o fato de ser mulher é que explica o seu sucesso entre o público (que ele indiretamente classifica como inculto).
Segundo o fulano (não vou nomear, mas o texto dele pode ser lido aqui, a presença de oito mulheres na lista de livros de ficção mais vendidos atualmente na Itália se dá exatamente pelo mesmo motivo: esse “monopólio” depende de uma política comercial simplificada, que entrega ao público uma literatura fácil de digerir, pois de “mulherzinha”. Ele não usou o termo, mas é isso a que se refere.
O professorzinho vai além: para ele, o público feminino gosta de confundir “verdade” e entretenimento e se apega às histórias fáceis contadas pelas mulheres.
Não satisfeito, criou três categorias de autoras mulheres que, segundo ele, dominam a cena literária no mundo: “Io sono Malala” (Eu sou Malala), aquelas que demonstram compromisso cívico; “Io sono malata” (Eu estou doente), as que ostentam morbidades psíquicas ou corporais; “Io sono maiala” (Eu sou uma porca, vagabunda), as que, segundo ele, são sedutoras e repugnantes. “A mulher pertence então a uma categoria oprimida, um sul metafórico que explica por que muitos sucessos femininos estão enraizados em ambientes do sul (como A amiga genial) ou em ambientes periféricos: o público não gosta de trabalhar duro, então eles acham a equação tranquilizadora.”
O texto já seria repugnante e ofensivo pelas outras passagens, mas ele ainda ostenta um aspecto que beira o criminoso. O escritor em questão, como qualquer pessoa minimamente informada sobre as notícias em torno do pseudônimo de Elena Ferrante na Itália, já deve ter ouvido falar sobre a ascendência judaica da autora, via sua mãe, casada com um napolitano. Ora, usar o termo “maiala” para se referir a uma mulher que descende de uma judia que foi perseguida pelo nazismo é adicionar outra camada ao xingamento. Afinal, a expressão “porca judia” (judensau) vem de uma ilustração pejorativa que mostrava judeus em contato obsceno com porcos e era usada como propaganda antissemita.
Eu não teria notado tudo isso se não tivesse me embrenhado nos textos de Claudio Gatti sobre Anita Raja e sua mãe Golda Frieda Petzenbaum.
É para não vomitar ou ter a vontade de pegar em armas que Elena Ferrante escreve. É para vingar a sua raça e as mulheres que Annie Ernaux escreve. É para ser lida e nos salvar que Virginia Woolf escreveu.
Eu só não sei como nós ainda nos apaixonamos por Ninos Sarratores, Anita. Não sei.
Mas, QUE ÓDIO!
“Estamos cansadas!”
Quem me chamou a atenção para o texto misógino foi a escritora Donatella Di Pietrantonio, vencedora do Prêmio Strega de 2024 com o romance L’età fragile, um dos que estão no topo da lista de mais vendidos da Itália agora. O livro retoma a história de um feminicídio ocorrido na região de Abruzzo na década de 1990 e deve virar filme, pois já teve seus direitos comprados por uma produtora. Ela reproduziu no seu Instagram um texto da editora Eva Ferri, representante internacional da Edizione E/O, que publica Elena Ferrante na Itália.
Eva criticou o espaço que ainda é conferido a críticos, autores e jornalistas italianos que usam a imprensa para dizer o que pensam, sem vergonha, do trabalho literário das mulheres que, segundo eles, está fora do cânone que eles próprios inventaram. “Estamos cansadas dessas ofensas, que reforçam o clima de violência e ódio de gênero”, ela escreve. Essa misoginia, ela diz, está lacerando o tecido social da cultura e da sociedade.
Mais Ferrante hoje no Instituto Italiano de Cultura
É hoje o lançamento do livro Para além das margens - A Itália de Elena Ferrante, de Isabela Discacciati, que percorreu o mapa da Tetralogia Napolitana a partir de sua relação pessoal com o país, das pesquisas que empreendeu para se aprofundar no universo Ferranter e de viagens nas quais se deparou com personagens, trazidos para a narrativa, que parecem saídos dos livros da escritora.
Vai ser o segundo lançamento do livro no Rio. Alguns registros do encontro para terminar a newsletter em alto astral.



me entristece pensar que o autor ressentido teria espaço em qualquer um dos jornalões por aqui. pensando bem, até em algumas revistas literárias ditas "a favor da liberdade de expressão". mas enquanto eles se lamuriam, a caravana passa.