Dênis de Moraes, presente
Uma pequena homenagem ao professor que, durante a graduação em comunicação, foi orientador e grande responsável pelas minhas paixões pelo jornalismo, pelos livros e pela cultura. Descanse em paz

“A esquerda e o golpe de 64”, Dênis de Moraes, anotei no meu primeiro caderninho de estudos quando comecei a frequentar a Biblioteca Central do Gragoatá, da UFF, lá pelos anos de 1990. Eu ainda cursava Economia e estava muito interessada em política, na história do Brasil e, sobretudo, nos anos da ditadura militar. Não sabia que esse era só o primeiro, numa lista de muitos livros do professor que eu iria ler.
Não terminei a faculdade de Economia, migrei para a comunicação, num concurso interno da universidade. No antigo IACS (Instituto de Artes e Comunicação Social), qual não foi a minha surpresa ao encontrar o Dênis. Fiz com ele duas disciplinas importantíssimas para a minha formação; uma sobre a história do Brasil através da leitura de biografias e a outra, uma oficina de textos. O professor era biógrafo de Graciliano Ramos, Oduvaldo Viana Filho, o Vianinha, e de Henfil. Graciliano, naquela época, já era meu autor favorito da vida, pois na interseção entre política e literatura, eu li com paixão os dois volumes de suas Memórias do cárcere.
Na disciplina das biografias, lemos a vida de Almirante, para discutir sobre o rádio no Brasil; a biografia de Glauber Rocha, para falar de cinema; a de Nelson Rodrigues, crônicas e jornalismo; Vianinha, teatro, o CPC, o golpe. E por aí em diante. Eu, já leitora de biografias, pois foi a história de Chatô, Assis Chateaubriand, que praticamente me levou ao curso, fiquei completamente fascinada. Eu tinha me encontrado na vida. O IACS era a minha segunda casa, e o Dênis se tornou meu orientador.
Na oficina de textos, aprendi outra coisa com ele: que eu não tinha nascido para escrever ficção. As aulas consistiam em leituras e muita, muita escrita. Tínhamos uma hora por semana para criar contos, poesia, histórias inventadas. Na aula seguinte, ele lia um ou dois textos que mais tinha gostado. Foi nessa turma que ele desenvolveu uma paixão platônica pela Olívia, a quem considerava uma nova Ana Cristina César. Ela escrevia bem, era poeta mesmo, e contista. Praticamente toda semana seus textos estavam entre os dois melhores, lidos para a turma com espanto. Eu tive um texto lido, em todo o semestre, e era um conto policial. Eu, que não gostava de policial, um gênero que até hoje, talvez por ter sido o único que fui capaz de criar, eu não leio mesmo.
Eu tinha chegado na faculdade de Jornalismo já com três paixões: Nelson Rodrigues, Glauber Rocha e Graciliano Ramos. Dênis tinha trabalhado no jornal O Globo, onde chegou a cruzar com o autor de crônicas imortais. Ele nos contava que um de seus maiores arrependimentos foi de nunca ter tido coragem de abordar o homem, que ainda batia à máquina quando os dois dividiam o mesmo andar do prédio da redação.
O professor era rigorosíssimo e tinha um humor peculiar. Ele não aceitava qualquer aluno em suas turmas e, já nos primeiros dias de aula, deixava claro que quem não lesse todos os textos e não estivesse a fim de escrever, que saltasse fora. Também não tolerava atrasos nem faltas, muito menos de quem ele gostava. Um dia, cheguei depois da hora numa das aulas e ele não me deixou participar das discussões sobre o texto. Eu levantava a mão para comentar, como sempre fazia, e ele passava para outra aluna. Não me olhava também, contrariado. No fim, veio me perguntar por que eu tinha atrasado, dizer que aquela aula era importante para o meu trabalho e que aquilo não se repetisse. Esse era o seu jeito de cuidar. Não queria que a gente errasse.
Muita gente não gostava dele. Os professores diziam que ele era vaidoso, só queria orientar os melhores trabalhos e que tinha sempre os seus preferidos. Uma amiga minha, anos depois de sairmos da UFF, me contou que ele não aceitou ser seu orientador. Ela já estava com o trabalho pronto, só precisava oficializar a orientação. Eu escutei e fiquei quieta. Dênis jamais aceitaria isso. A formação, o convívio acadêmico, a influência que ele gostava de exercer eram fundamentais.
Minha monografia foi sobre o período em que Glauber exerceu o ofício de jornalista na Bahia, nos anos 50 e 60, antes de se tornar o cineasta famoso, fundador do Cinema Novo (achei nos arquivos guardados por sua mãe a primeira menção na imprensa ao conceito) e grande agitador cultural nos anos 60 e 70 no Brasil e nos festivais de cinema do mundo. Para fazer o trabalho, frequentei a Biblioteca Nacional, onde manuseei os originais do Jornal da Tarde da Bahia, onde Glauber foi chefe de reportagem e repórter de polícia. Na época, ainda não eram microfilmados. Eu transcrevia os textos a mão. Imaginem isso! Fui também várias vezes à biblioteca da Cinemateca brasileira e frequentei muito o Tempo Glauber, onde Dona Lúcia, sua mãe, guardava tudo com o talento de arquivista que tinha exercido como profissão no Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro.
Eu adorava as aulas do professor. Gostava de seu jeito mal-humorado, das implicâncias e de algumas opiniões radicais durante a vida, que depois ele admitia mudar, com a chegada da maturidade. Outras ele mantinha. Detestava João Ubaldo Ribeiro porque ele se casou com a ex-namorada de Henfil. Ele era tão apaixonado pelos seus biografados que comprava até as suas brigas amorosas. Implicava com Cecília Meireles, pelo seu perfil conservador. Fazia pra gente a lista de escritores que tinham trabalhado no antigo Departamento de Imprensa e Propaganda de Getúlio Vargas, mas de alguns ele gostava. Então relevava.
Uma vez, mostrei pra ele o meu caderninho com o nome do seu livro anotado. Era a primeira vez que se materializava na minha vida um autor que eu admirava. Ele, vaidoso, gostava disso. Eu falava porque esse é meu jeito, também não escondo paixões e sentimentos. Na monografia, Imprensa em transe: Glauber Rocha na imprensa da Bahia e do Rio dos anos 50 e 60, dediquei dois longos parágrafos a ele. Olivia, a aluna-poeta, escreveu uma frase curta e ele ficou decepcionado. Ela gostava tanto dele quanto eu, mas era mineira, ou seja, discreta. A gente ria quando falava disso, eu e ela.
Fiquei muito tempo sem falar com ele, até o dia em que mandei um email avisando que ia cuidar da divulgação da reedição de um de seus livros, a biografia de Henfil, pela José Olympio. Contei que tinha feito carreira no Globo, como ele achava que ia acontecer, e que agora estava no mercado editorial. Ele foi carinhoso. Um tempo depois, nos falamos rapidamente pelas redes sociais. Ele estava relançando A esquerda e o golpe de 1964.
Pensei muito no Dênis recentemente durante a leitura de A melhor época da nossa vida, do italiano Antonio Scurati. Lembrei de uma frase que o professor deixou num dos meus trabalhos: “Você escreve com o fuzil na boca. Parabéns.” Scurati tem um texto assim e desconfio que o professor seria como um Leone Ginzburg: abriria mão de seu emprego, mas não de sua ideologia.
Dênis gostava de dizer que muitos intelectuais morreram de Brasil. Antônio Maria, para ele, tinha morrido de amor, já que não suportou a separação de Danuza Leão, que o trocou por Samuel Wainer. Mas Glauber e Joaquim Pedro de Andrade, por exemplo, não, esses não aguentaram mais viver aqui, depois da ditadura. Por essas e outras, suas aulas eram deliciosas e inesquecíveis.
Nesta semana, voltei para a UFF, desta vez matriculada no Mestrado em Literatura. Teria gostado de saber o que o Dênis acharia. Na apresentação do programa, nesta semana, o coordenador da pós, André Dias, fez um discurso com o qual concordo muito e que também me fez lembrar do Dênis. Ele falou de compromisso, de produção, de zelo com os prazos e da importância de estudarmos em uma instituição pública de excelência. E que não é mais que nossa obrigação sermos responsáveis e devolvermos à sociedade o que a universidade nos dará. Fiquei emocionada. E o André, ainda por cima, é especialista na obra de Nelson Rodrigues, uma de minhas paixões, lembram? O dramaturgo carrancudo e que debochava da esquerda, mas que o Dênis, com suas idiossincracias, respeitava e admirava.
Aos 70 anos, Dênis de Moraes faleceu hoje, ao sofrer um infarto. Desconfio que também morreu de Brasil, de mundo, da extrema direita que nos ameaça. Descanse em paz, professor.
Claudinha, que bonita homenagem ao professor.
Que linda homenagem. Eu fiz uma disciplina optativa com o Dênis no meu último ano da graduação, em 2014; me foge o nome agora, mas era sobre biografias. A turma era pequena, não mais que dez alunos, e foi dada no bloco A do Gragoatá, reluzindo de novo e cheirando a tinta fresca, uma amostra da promessa do Novo IACS que só se concretizou dez anos depois. Eu me lembro de ele ser temido entre os alunos e de muitas características que você descreveu, mas nunca me intimidei (acho que eu chegava sempre na hora, ou era mais quieta nas discussões mesmo). O trabalho final era escrever um perfil biográfico e eu escolhi escrever sobre Chiquinha Gonzaga, cuja biografia eu já tinha visto adaptada para o teatro e a televisão várias vezes e sentia muita afinidade (porque não escolhi uma escritora? Talvez por medo de me associar a esse grupo que eu tanto sonhava em pertencer?). Lembro de terminar de escrever o texto no fim do prazo, horas antes da entrega, porque além de entregar o trabalho impresso (não era necessário) eu ainda resolvi entregar um CD com músicas de Chiquinha para acompanhar a leitura. Ele deve ter gostado muito do trabalho (era um perfil em três partes: uma jornalística, uma fictícia, e outra em tom de ensaio, expondo minha relação com a biografada), porque me convidou para tomar um café e comentá-lo pessoalmente (deu nota dez), e me presenteou com um exemplar de sua biografia do Vianinha. Recentemente estava rearrumando os livros e reencontrei a biografia autografada, e me perguntei por onde ele andava. Uma pena a sua partida. Obrigada por compartilhar a sua história. E bem-vinda ao mestrado!